fotografia de Robinson Kanes
Uma viagem de Domingo numa Traineira…
O peixe sempre fez parte da minha vida, desde o seu cheiro às suas entranhas. Um peixe escamado é mais vulnerável, um peixe de olhos vermelhos não interessa a ninguém, o peixe fresco é aquele que ainda tem sabor a mar, e o mar é a imensidão das possibilidades que podemos usufruir. O que venho aqui partilhar hoje: é um dia da minha vida numa Traineira. Obrigada pelo convite Robinson, é um gosto poder fazer parte destes dias de caldeirada com todos (a caldeirada de que mais gosto é a de pata-roxa). O tema que trago não é político, ou que contribua para a mudança da sociedade, talvez não se encaixe neste espaço, é só e apenas um modo de dizer que uma traineira não se resume a um instrumento de trabalho, é também ela um modo de vida.
Num Verão, já muito distante, passei muitos domingos de Sol a bordo de uma traineira.
É de um dia destes que vos vou falar, talvez não seja um só dia, mas a mistura de todos eles, são aqueles pormenores que de vez em quando recordo, são lembranças de mim enquanto criança que despertam agorapara o quotidiano. Naquele tempo, o meu pai trabalhava numa traineira azul clara, que tinha nome de homem; os donos, um casal sem filhos, gostavam de passear pelo Sado ao domingo e, apesar da faina diária e de ser dia de folga, era nesses dias que pairava a descontração e a vontade de usufruir do Rio, de Tróia e da Serra da Arrábida. Assim, partíamos de manhãzinha, quando a neblina ainda estava agarrada às águas do Sado, o Sol despontava também animado com a nossa viagem, carregávamos a comida para o bote e depois para o barco. A minha bagagem era simples, uma toalha de praia e expectativas, muitas. Avizinhava-se um dia em grande, quanto mais comprido fosse melhor, ninguém se importava de se levantar cedo, tenho a noção que nem dormia bem durante a noite, à espera que ela acabasse. O roncar do motor do barco acordava as gaivotas que por ali houvesse, o meu pai acendia um cigarro e exalava o fumo enquanto largava as amarras, depois, numa manobra elegante e experiente, o Mestre retirava o barco do porto e levava-o para o Rio. A brisa cobria tudo, cheirava a manhã e a rio, a espuma branca ladeava o barco, criando ondasna popa, o bote que ia agarrado com uma corda lançava-se nessas ondas como se tivesse medo de ficar sozinho. Íamos até à Ponta do Verde, se havia muita gente rumávamos até à Caldeira e fundeávamos aí o barco, umas vezes mais ao largo, outras mais perto de terra, quase sempre se via a fatexa no fundo, mas havia outras em que a água estava tão verde escura que tudo parecia ser possível acontecer naquele lugar, pelo menos na minha imaginação. A manhã era passada ali, onde eu e o meu irmão dávamos uns mergulhaços bombásticos, e não havia direito a ter medo, porque se tal acontecesse o meu pai fazia o favor de nos amandar borda fora. Era um sobe e desce da água para o barco, até que a fome se agigantava a cada cinco minutos e fazia-nos ouvir os roncos do nosso próprio estômago. Lá para as onze da manhã os adultos começavam a preparar o almoço, acendia-se o fogareiro, salgava-se o peixe, coziam-se batatas e fazia-se salada de tomates com pimentos assados. Quando as batatas estavam cozidas juntavam-se à salada (que isto de estar num barco pequeno exige muita logística!), assim numa só taça ficavam as batatas e a salada. A mesa era pequena e a malta espalhava-se pelo barco, o fumo do fogareiro travava duelos com o vento marítimo. No meio do balanço manso do barco, do cheiro da comida no ar, de um apetite voraz, do Sol abrasador, do verde e do azul misturados por toda a paisagem, as ondas tocavam tambores no casco azul claro da embarcação, agitando-se ao gosto do vento. Na outra margem Setúbal espreitava-nos, enquanto alguns reflexos de luz no riocegavam-nos momentaneamente. Ficávamos com a barriga a abarrotar, e como depois de comer não podíamos ir ao banho, adivinhavam-se três horas sem fazer nada? Rumávamos então até à Albarquel. Nessa época a praia era uma pequena baía onde abundavam algas, rochas, polvos, camarões, linguados, mexilhões e uma infinidade de animais marinhos. A água era calma, lisa e verde maravilha. Era hora de andarmos de bote. Eu e o meu irmão íamos por ali fora até atinarmos com os remos, depois tudo era fácil, para a esquerda, para a direita, marcha à ré, e no meio de tudo isto, como se de uma floresta se tratasse, as algas vinham quase à superfíciejuntando-se, por vezes, alforrecas pelo meio. Eu, medricas, não gostava de nadar ali, lado a lado com aquelas algas gelatinosas e arrepiantes. Ficava-me então pelo remo, e de vez em quando uma mãozinha na água. Depressa chegava o final do dia e as escamas do peixe espalhadas pelo convés hámuito que estavam secas, ao pisá-las com os pés descalços sentia o sal juntar-se a mim. Estava quase na hora de voltarmos, mas antes uma última paragem. Outão! Aqui eu podia apreciar os remoinhos na água, ver a saída da Barra e a selvagem grandeza da Serra. A minha pele estava curtida do sol, de tão escura ficava esbranquiçada do sal. Seca e áspera. Comíamosentão um lanche na volta à cidade. O Sol já se punha, havia o cheiro a gasóleo no ar, os salpicos de mar na minha cara, uma toalha pelos ombros e ao longe as luzes da cidade começavam a aparecer. A viagem para terra parecia-me sempre mais curta, as gaivotas por vezes acompanhavam-nos, dando aqueles gritos estridentes de liberdade, depressa entravamos no porto e descíamos para terra, onde subíamos uns degraus cheios de lismos, e onde sempre me chamavam a atenção para ir devagar, o que era o mesmo que me dissessem para ir bem depressa, foi aí que um dia caí e fiz uma mossa na canela da perna, mas afirmei com convicção que não me doeu nada, que era só um arranhão, no entanto aquilo doeu-me até ao tutano, sendo que ainda hoje se passar com a mão sinto aquela cova no osso. Foi num dia destes. Qual deles não sei.
Alice Alfazema