Caldeirada Com Todos...”V”
Filipe Vaz Correia
Eco
a)
O Pêndulo de Foucault (1988), de Umberto Eco, conta a história de três amigos que tendo lido – e intelectualmente desprezado – muita literatura ocultista, estudos cabalísticos e teorias conspirativas, decidem por mero gozo e exercício da inteligência inventar “O Plano”. Acontece que esta ficção foi de tal forma bem construída, que outros adeptos de teorias da conspiração a levam a sério. “O Plano” passou a existir a partir do momento em que houve pessoas suficientes a acreditar nele, a falar nele, a aceitá-lo como real: nem os seus criadores tinham poder para agora o desmentir. Algo não podia ser falso se o outro também o validava, reconhecia e partilhava.
b)
Na casa de V ninguém se interessava por futebol. Discutiam-se energeticamente muitos assuntos, mas nenhuma pessoa da família tinha clube, nem havia memória de terem assistido a um jogo. Assim, V (que só anos mais tarde soube o que era um “fora de jogo”, ou “uma carga de ombro”) assistia ignorante, silencioso e confuso às longas discussões que os amigos gritavam no recreio da escola: a retórica sobre penaltis, a dialética sobre a arbitragem ou as teses e antíteses sobre mão-na-bola vs. bola-na-mão. Aquilo que intrigava V era que apesar da energia, da paixão, dos argumentos e – às vezes – de um par de estalos, nada produzia mudança: a narrativa dos derrotados contava histórias sobre faltas por marcar, árbitros comprados e interesses ocultos; a narrativa dos vencedores assegurava que só por azar não ganharam por mais. Na vez seguinte a discussão prosseguia, mas as personagens poderiam trocar de papéis apesar de manterem o guião. O mais curioso para V era o sentido tribal assumido pelos seus amigos impermeáveis à mudança: “nós” era uma ligação que juntava malta que fora o clube nem se dava muito bem e a realidade dependia de ser lida por “nós” ou por “eles”. Em rigor, apesar de V assistir ignorante, silencioso e confuso, poderia antecipar quem iria desempenhar qual papel, mesmo antes da discussão se iniciar.
c)
Em 2001 a mãe de V telefonou indignada: “Nem vais acreditar neste despautério!”. A palavra “despautério” existe; significa disparate e poucas pessoas – para além da mãe de V – ainda a usam. V estava fora de Portugal e não sabia que tinha caído uma ponte, com carros e pessoas atrás. Foi uma tragédia que matou quase 60 pessoas, mas para a mãe de V o despautério era outro. Um jornalista entrevistou um oficial dos fuzileiros que explicou as dificuldades técnicas de mergulhar em segurança e recuperar cadáveres submersos num rio bravo e enlameado. Depois entrevistou o Tozé (chamemos-lhe assim para fins ilustrativos) que afirmou que os fuzileiros estavam a fazer tudo mal, que o mergulho devia ser mais além e que coiso e tal. Apesar do jornalista ter perguntado se o senhor era dali e se conhecia bem o rio e a resposta ter sido “não, vim só cá ver”, a mãe de V estava indignada. O tempo, a forma, o modo, a palavra, a via, o ritual... tudo tinha sido igual para os dois entrevistados. A realidade, os factos, a informação, a autoridade, a verdade, o conhecimento... dependiam agora do espectador.
d)
Casablanca estreou em 1942 (fui ao Google, não sei estas coisas de cor). Para além de ter produzido uma quantidade impressionante de frases clichê, tornou familiar o nome desta cidade marroquina. Durante décadas, milhares de turistas foram a Casablanca tendo no filme a única referência e memória daquele espaço. Acontece que as cenas foram todas rodadas nos estúdios de Hollywood, tornando a experiência turística decepcionante. Quando V foi a Casablanca, deu por si a preferir a versão que não existia. O mais estranho – quase um despautério – era o facto de nem sequer haver um lugar chamado Rick's Cafe, o lugar mais icónico daquela cidade. A insistência da ficção fez inventar o real: em 2004 foi inaugurado um espaço com esse nome, com um pianista residente (chamado Sam?) e o mundo voltou a sincronizar-se.
e)
Durante muitos anos V deu aulas de história da arte no ensino superior. Propositadamente evitou sempre mostrar a Mona Lisa, de Da Vinci. Só em 2008 lhe fez – o que pensava ser – uma breve referência, mostrando um recorte de jornal onde se informava ter sido encontrado, na margem de um documento, uma nota de encomenda: quem tinha pago o retrato, quem tinha sido retratado, em que ocasião e por que valor. Os alunos de V ficaram visivelmente desiludidos. Todas as teorias que conheciam e partilhavam (algumas impossíveis ou contraditórias), pareciam esfumar-se como os tons da paisagem naquela pintura. Então não é Leonardo vestido de mulher? Então e o Graal? Então e os Templários? Um aluno mais indignado disse que a notícia era apenas “mais uma opinião, mais uma versão e que cada um poderia continuar a acreditar no que lhe parecesse melhor”. Nesse momento V sentiu-se a baloiçar no pêndulo de Foucault: afinal “O Plano” existia e as palavras tinham perdido o poder de repor a verdade.
f)
As plataformas digitais nivelaram todos os discursos. Aquilo que entendemos como realidade, os factos que a sustentam ou a informação que a confirma; chega-nos cada vez mais por uma via estreita, única e uniforme: no ecrã do telefone todos são iguais. Acontece que um algorítomo, desenhado não para nos fazer mal, mas apenas para nos fazer ficar ali suspensos, absortos, entretidos... percebeu que gostamos mais de ver as nossas opiniões validadas do que confrontadas. O MIT publicou um estudo onde conclui que as notícias falsas se espalham seis vezes mais depressa que as outras. “Mas o que é que esses gajos sabem”? – perguntaria o Tozé. A nossa versão do mundo pode ser tão forte que se torna real. Porque nos faz sentir especiais ao saber de um plano desconhecido pela maioria, porque nos faz sentir parte de uma tribo que confirma e valida as nossas crenças, porque nos faz sentir do lado certo. A “nós”. E depois há os “outros”. Se discutirmos o mundo como discutimos futebol, se desprezarmos factos como sendo opiniões, se nos considerarmos especialistas em todos os assuntos, se escolhermos o Tozé como a nossa fonte; reentramos numa era de dogmas obscuros: a verdade pode ser alternativa, os outros vivem à nossa custa, eles também são racistas, já não se pode dizer nada, deviam ir para a terra deles, agora elas ofendem-se com tudo, a juventude está perdida, há quem diga que isso é um mito, eles são todos uns corruptos, se fosse ao contrário não havia problema, ele só diz o que nós pensamos, aquela gente só vem para cá roubar, antigamente é que era bom, se fosse eu a mandar... Para todos os nossos dogmas encontramos um eco. Que pena não ser o Umberto.
V