Às vezes a sua falta impõe o silêncio, esse vazio tão esmagador que dói, se instala e esventra, desnudando a solitária e incisiva tristeza.
A folha em branco, desfiando o dito silêncio, o tic tac do relógio impondo o passar do incógnito tempo, numa angústia que alimenta o sofrimento...
O coração amargurado, a poética alma surda e muda, o arfar descompassado de um olhar esquecido, tantas e tantas viagens prometidas, canceladas esperanças de outrora, frases sem sentido nesse mar por navegar.
Valerá a pena, essa pena que se extingue, essa tinta seca que se recusa a escrevinhar, nessa gaguez que irrompe envergonhadamente?
Valerá a pena?
Inspiração, expiração, no bater de um texto, arregaçando as mangas soletradas de cada letra numa equação de cada sílaba versus o estranho desenho caligráfico.
Poetas e trovadores, cantores e declamadores, sentidos censores de perdidos amores na carta de um anjo...
E assim vai deslizando, por esse escorraçado e insano mundo, o rabiscado olhar escondendo esse adeus que a eternidade nos prometeu...
De quem amou.
Falta-me a inspiração...
Falta-me inspiração mas não me falta a vontade de voar, voar bem alto, entrelaçando cada pequeno pedaço de mim aos sonhos que se perderam.
Só damos importância e valor aquilo que não temos, não é certo?
Alguém alguma vez deu valor à liberdade?
Foi preciso aparecer um vírus e haver recolher obrigatário para darmos valor a uma coisa que tínhamos dada como garantida.
E que tal com este confinamento aprendermos a dar valor aos pequenos "grandes" detalhes? E que tal darmos valor ao ar que respiramos? E que tal darmos valor ao paladar, ao tacto, à visão? E que tal darmos valor àquela flor que floresce no nosso jardim?
Ainda vamos tempo de mudar, ainda vamos a tempo de sermos melhores...
Aproveitem todos os momentos, apreciem os pequenos detalhes e pormenores, deixem-se de intrigas e disparates, pois nada é garantido nesta vida, nem mesmo a nossa liberdade!
No momento em que escrevo o meu texto a humanidade atinge mais um feito inacreditável. Vinha eu preparado para escrever sobre a música que se vai ouvindo cá por casa, quando me apercebo da importância da perseverança e do engenho e da sua aterragem bem sucedida.
Ainda a semana passada falávamos de Eratóstenes e do seu feito incrível numa altura muito primitiva. Não é de estranhar que os seus ´descendentes´ tenham conseguido este feito. Hoje dia 18 de fevereiro, a NASA conseguiu aterrar com sucesso um ´rover´ chamado perseverança em Marte. A viagem durou cerca de 6 meses e percorreu quase 300 milhões de milhas. Tem como missão principal procurar sinais de vida antigáa (ancient life) noutros planetas. Vai explorar a cratera de Jezero, um lugar em Marte onde se acredita que tenha existido um lago há cerca de 3.9 mil milhões de anos. Enviar-nos imagens de Marte claro e pela primeira vez, som de Marte! Vai fazer outra coisa também. Este veículo leva um mini helicóptero chamado engenho (ingenuity) que vai permitir recolher imagens aéreas e servir de apoio para futuras missões tripuladas a Marte (!!!). Vai até recolher amostras do solo marciano que só chegarão ao nosso planeta para serem analisadas em 2030.
Incrível não é? Certamente descendentes de Eratóstenes e de Alexandre o Grande.
Apesar de tudo ainda há tempo para uma música! Um artista português muito apreciado cá em casa e que dedico a um leitor no Brasil que talvez ainda não o conheça. Aqui está.
Pela manhã perguntei o que é um Herói. Obtive respostas muito interessantes, e sugiro-vos a visita ao postal que o não é . Obtive respostas mas não respondi. Desvelei a ideia, sim, mas não me alonguei - para isso pensei e escrevi este postal.
Um herói parece-me ser alguém por quem queremos modelar o comportamento. Não será forçosamente um valente, apenas alguém que se supera e supera vicissitudes.
Na Antiguidade, os heróis venciam os deuses, pois que deles descendiam. Depois vieram os Bárbaros, e os heróis passaram a brindar aos deuses mas a serem notados pela valentia e pelo destemor nas terrenas artes da luta. Todas as guerras têm heróis porque todos as almas precisam de orientação. E eram guerreiros os heróis dessa gesta: se em guerra escolhiam os corajosos e, mais amiúde, os corajosos vencedores, entre guerras a paz chamava heróis aos bons, aos justos. Como se estas definições fossem incompatíveis.
E eram. Aparentemente, continuam a ser.
Um soldado é treinado para a guerra. Matar não é o seu objectivo - faz parte do seu treino e pode fazer parte da sua missão. Mas até para matar há regras, cujo incumprimento determina a diferença entre guerreiro e criminoso de guerra.
Só em 1978 a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi adoptada em Portugal. E se não podemos avaliar à sua luz as nossas anteriores acções, então podemos, e devemos, reavaliar aquilo que dissemos depois.
Um herói não salva vidas matando os seus iguais - por isso os heróis da antiguidade matavam criaturas, não deuses nem homens, o restrito código de honra definindo oq ue podiam e deviam fazer. Um soldado é treinado para cumprir o seu dever, um bom soldado cumpre-o com denodo e valentia. E até pode ser um herói - quantos o não foram, o não são, carregando em braços camaradas caídos, arriscando a vida para salvar civis de fogos e torrentes... Mas nunca pode ser herói aquele que escolhe quem matar e quem salvar pela identidade. E será sempre um criminoso de guerra quem mata indiscriminadamente soldados, civis, crianças.
Acredito que quem combateu lado a lado com Marcelino se sinta agradecido pela sua ferocidade. Também acredito que sobreviventes de naufrágio agradecerão a quem manda que se coloquem nos ombros de outros náufragos para que o próprio nariz fique fora de água.
Ou de Marcelo Rebelo de Sousa. Que assistiu ao funeral de um cidadão português, um dos mais condecorados militares da nossa História. MRS pode fazê-lo enquanto cidadão. Não deveria ter discursado enquanto Presidente da República - a República que condecorou Marcelino não tem os valores da República que lhe viu a urna.
E ambas se recusaram discutir a Guerra Colonial. Ambas se recusam ainda assumir responsabilidades pelos massacres, pelos crimes cometidos em Batepá (1953, São Tomé), Pidjiguiti (1960, Guiné), Mueda (Moçambique, 1960) ou Luanda (Angola, 1961). Ou em Wiriamu, no norte de um Moçambique exaurido já no ano de 1972.
Mamadou Bá chamou sanguinário a Marcelino. E há quem se indigne e peça a sua expulsão de Portugal. Tarde vem tal apodo, ansiosos que andavam por um pretexto, um qualquer pretexto, para o mandarem para a sua terra. Uma petição que apenas reflecte a vingança das nada virgens muito ofendidas com o alegado insulto póstumo ao mais condecorado militar - que dizia, sobre si, ser "um preto que vem do Ultramar, da Guiné, do mato, e sou mais condecorado que os oficiais da nação, é uma vergonha para eles", sem lhe ocorrer que não seriam as suas origens a causa do desagrado de muitos dos seus irmãos de armas.
Na Baixa Idade Média difundiu-se, muito por conta das Cruzadas, a ideia do herói nascido das cinzas de um qualquer suplício, confundindo-se heroísmo com sacrifício. Tal ideia perdurou, e há ainda quem classifique de heróis aqueles que não passam de vítimas. Mamadou não é nenhum herói. Mas, à força de o quererem vítima, pode bem superar-se e superar as vicissitudes, derrotando-os.
Não, não há qualquer argumento que permita, nos dias de hoje ou nos de então, chamar herói a Marcelino da Mata sem nos colocarmos nos ombros de mortos.
É hora de fazermos as pazes com a nossa História. Mas, para isso, temos de a olhar de frente e esquecer os heróis que aprendemos, os heróis por outros valores condecorados.
Pergunto-me, até, se precisaremos de heróis. Se, humanos, não nos seremos suficientes.
Por hoje fico-me entre os Grandes do Panteão Nacional, na imagem. Fico entre Grandes, não entre Heróis. E fico bem.
Fiquem também muito bem. Com Adriano Correia de Oliveira e Pedro Soldado.