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sardinhaSemlata

Um espaço de pensamento livre.

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Um espaço de pensamento livre.

30.06.21

Os especiais


Sónia Pereira

Tinha 9 ou 10 anos quando a minha mãe me comprou o livro “O Ano da Peste Negra” da colecção Viagens no Tempo e li-o num ápice. Os livros anteriores da mesma coleção também foram devorados num par de dias. Era uma forma divertida de aprender um pouco de história com muita aventura à mistura. Crianças e um cientista que viajavam no tempo até ao ano 1348, chegando a um Portugal fustigado pela peste negra. Anos mais tarde, dei de caras com o Camus e a sua “A Peste”. Potencialmente distópico, mas afinal não.

O conceito de uma pandemia a nível mundial nunca me pareceu descabido, assunto que me despoletasse qualquer tipo de pensamento conspiracionista. Até porque, bastava olhar para o passado para perceber que não somos assim tão especiais e intocáveis. Toda a nossa história está cheia de desgraças contagiosas várias. Num mundo globalizado, uma doença globalizada é uma espécie de consequência sem qualquer incongruência, um desenlace óbvio numa narrativa ligeira.

No entanto, com os avanços científicos, os povos ocidentais julgavam-se, e julgam-se ainda, resguardados de certas hecatombes. Cólera em África, normal, Zika no Brasil, rotina, HIV – só atinge “os que se metem a jeito”, gripe asiática? Ui, isso já lá vai há que tempos (sessenta anos lavam mesmo as memórias mais resistentes), gripe espanhola? Do que eu havia de me lembrar. Outros tempos, outros tempos.

Temos uma grande dificuldade em gerir tudo aquilo que perturbe a nossa rotina. E isso acontece por uma razão muito simples – a sociedade ocidental, os povos desta sociedade ocidental, acham-se, de certa forma, especiais, os escolhidos. Caminhamos imperturbáveis perante as notícias exteriores de caos, de miséria, de guerra, de doença. Para dizer a verdade, as próprias notícias são afrontosas, perturbam o nosso bem estar, deixam um rasto de descrença, de infelicidade que, embora momentâneo, não o queremos a manchar a nossa vida. A nossa vida tem uma estrutura, segue um guião, não queremos cá nada que altere a nossa liberdade de buscar a nossa felicidade (e sim, a doença, a miséria, perturba a nossa felicidade).

E aqui, neste ponto, acabam-se as minhas certezas sobre a pandemia.

Noto que, de semana para semana, cada vez ando mais confusa, cada vez navego em águas mais agitadas pela dúvida. Observo o esgrimir de argumentos como a um jogo de ténis, com a bola a riscar o ar da direita para a esquerda e da esquerda para a direita. Um jogo num movimento contínuo, sem interrupções, que me suga a alma pelo desassossego que causa.

Haverá um aproveitamento dos laboratórios farmacêuticos da situação pandémica?

Haverá um aproveitamento dos Estados da situação pandémica para restringir liberdades e ações dos seus cidadãos?

Haverá um aproveitamento de certas forças políticas para capitalizar o descontentamento provocado na população pelas restrições várias?

Haverá um equilíbrio, A harmonia ideal, entre confinar (restringir o direito à circulação, ajuntamentos, festas, convívio familiar, etc.) e a manutenção de uma rotina que permita o funcionamento de empresas, serviços, restauração e afins?

Ou o melhor será simplesmente deixar andar, afinal uma dezena de mortos pela doença por dia não seria nada de muito escabroso (morre mais pessoal de doenças cardiovasculares, doenças oncológicas ou fatalidades várias)?

Será justo deixar uma sociedade em espera, crianças, adolescentes, adultos que necessitam do seu trabalho para sobreviver, só para salvar (potencialmente) uns quantos idosos?

Mas será sequer ético colocar a questão anterior? Não deveríamos fazer o que estivesse ao nosso alcance para proteger a vida humana independentemente da idade da pessoa em questão?

Pois, mas fará sentido devotar todo um sistema de saúde a uma doença que pouco mata, quando esse mesmo sistema acaba por marginalizar pacientes com outras doenças também elas graves e, sem cuidados, fatais?

Temos áreas que, com a pandemia e as suas restrições, caminham para a ruptura. A área das artes sairá incólume de todas estas regras castradoras ou o que restará será uma sombra, um nada do que poderia ser? E o que será de uma sociedade sem artes?

Será que todo este estrebuchar com regras e restrições não será apenas fruto de nos sentirmos especiais, seres impossíveis de contrariar?

E não serão os dados pandémicos, de certa forma, empolados pela comunicação social, sempre sedente de sangue? Será a situação assim tão grave ou afinal o que vemos é apenas uma manipulação do nosso medo?

Ou será que aquilo que temos é apenas a versão ligeira controlada por todos os esforços restritivos? Onde estaríamos, quantos de nós teriam perecido, se tivéssemos optado por deixar andar?

E as vacinas? Funcionam, não funcionam, reduzem o número de infecções graves e consequentes mortes ou só servem para encher os bolsos corporativos de certas empresas?

Pois… não sei. Os dias seguem numa viagem em sistema de navegação à vista. Adaptação, fluir com a corrente, observação com interesse das mudanças dos comportamentos, do impacto dessas mudanças nos outros, nos trabalhos, na socialização, na forma de estar, na gestão dos medos, das aspirações, dos sonhos das pessoas.

E, numa última tentativa de preservação mental, opto por deixar de procurar as respostas para todas as perguntas anteriores. Perguntar chega.

25.06.21

Ela e ele


JB

Ela era frágil e insegura.
Ele era forte e arrogante.

Ela tinha muitos medos, chorava facilmente, deixava-se manipular e tentava agradar tudo e todos.

Ele quase não tinha medos, nunca chorava, só agradava quem queria e só era simpático com pessoas conhecidas.

Quando se conheceram ela gostou mais dele do que ele dela:

 - Olá, eu sou a Maria.

(ele não respondeu)

Mesmo com este início frio a relação foi-se desenvolvendo. Começaram a encontrar-se uma vez por semana... Depois duas... Primeiro só 15 minutos, depois já mais tempo...

Maria sentiu que pela primeira vez encontrou alguém que não conseguia agradar assim tão facilmente. Alguém que era bruto com ela muitas vezes mas que por isso a ensinava a ser mais resiliente.

Ele achou que ela era só mais uma. Não tinha remorsos com as nódoas negras de Maria, nem se importava muito se a ouvia chorar como às vezes acontecia. Reparava no entanto no seu ar frágil, em como se movia sem confiança, com medo de tudo. Não gostava disso.

Numa tarde quente de junho algo sério acontece:

Estão juntos num passeio e tudo parece estar a correr bem, mas ele apercebe-se de um perigo iminente e atira violentamente a Maria para o chão. Ela cai, suja com o pó e magoada com o impacto. Não chora. Ele repara. Volta para junto dele e seguem para casa. A Maria está apavorada e com medo dele, mas não diz nada. 

 

Ontem voltaram a encontrar-se:

Maria aproximou-se, mais forte que nunca. Ele olhou para ela quase que surpreendido com coragem e até audácia da jovem. Achou que depois do susto já não voltaria a ver aquela menina que ainda há uns dias parecia tão fraca. 
A já mais confiante Maria, aproximou-se dele, do Trovão.
Com as suas botas de montar, agarrou nos estribos e voltou a subir para cima dele, um cavalo castanho com crinas douradas, altivo, orgulhoso e imponente.

E hoje era vê-los os dois, a Maria e o Trovão no jockey do Campo Grande, mais fortes que nunca e ambos com um sorriso na cara. (A Maria de certeza e o Trovão quase que posso jurar).


JB

 

 

23.06.21

Laurel


Sónia Pereira

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Paul Childs/Reuters

 

Vejo o mundo com os óculos daquilo que sou: uma mulher, de quarenta e dois anos, mãe, heterossexual, ateia, cidadã de um país ocidental. Mas vendo o mundo com esses meus óculos, digo-me constantemente, relembro-me, de que aquilo que vejo, aquilo que interpreto no mundo que me rodeia, pode não ser exactamente aquilo que eu percepciono, pode ser apenas a minha visão, a minha versão daquilo que me rodeia. E pessoas com diferentes óculos verão e sentirão o mundo de diferente e até divergente maneira.

Dito isto, pego numa das notícias da semana. Pego-lhe com certo medo – a sua temática é melindrosa e tenho noção que questionar sequer, facilmente poderá levar a que seja rotulada de certas coisas, coisas que ninguém quer ser rotulado hoje em dia. Mas não lhe pego com fúria, pego-lhe porque tenho dúvidas, porque tenho realmente muitas dúvidas sobre o assunto e dúvidas de ordens várias.

Laurel Hubbard, halterofilista neozelandesa de 43 anos, apurou-se para os Jogos Olímpicos de Tóquio na categoria acima de 87 quilos. A notícia não seria notícia se Laurel não fosse a primeira atleta transgénero a competir nos Jogos Olímpicos. Laurel já competia na modalidade, na categoria masculina, antes da transição em 2013, mas os seus melhores resultados, incluindo medalha de prata nos mundiais de 2017 e medalha de ouro nos Jogos do Pacífico em 2019, vieram após a transição, quando já competia na categoria feminina.

Segundo o COI (comité olímpico Internacional), a possibilidade de um atleta transgénero feminino competir nos jogos olímpicos prende-se com a quantidade de testosterona que o mesmo atleta apresenta, tendo os valores que ficar abaixo de 10 nanomoles por litro, pelo menos um ano antes da primeira competição.

E sendo eu tudo menos cientista ou médica, aceito como válido o critério. Quero acreditar que nada seria feito para prejudicar as carreiras desportivas das mulheres biológicas. Anos de luta não poderiam, não seriam jogados fora com indiferença, sob o manto da inclusão. Mas ainda assim, tenho dúvidas. Pesquiso, mas não fico completamente esclarecida – as opiniões são diversas e nem sempre concordantes. No fim, ficam as perguntas, sérias, a urgir resposta:

Será que uma pessoa que passa pela puberdade como homem, cresce, desenvolve-se fisicamente como homem, não terá mais nenhuma vantagem física, comparativamente a uma mulher, a não ser a testosterona? Subtraindo-se a testosterona, o desempenho físico de alguém que cresceu como homem ficará idêntico ao de uma mulher biológica? E que marcas deixou essa mesma testosterona no esqueleto, em cada osso, nos músculos desse ser humano, que viveu sobre a sua «influência» até aos 35 anos?

Será justo para as atletas mulheres (biológicas) terem como competição direta um atleta que já competiu na categoria masculina, tendo em conta que as categorias desportivas foram criadas precisamente para colmatar as diferenças de desempenho devido às diferenças físicas entre homens e mulheres?

E tornando-se esta situação uma prática recorrente no futuro, não serão as mulheres biológicas simplesmente arredadas de certas modalidades (muitas) em que a força física é uma mais-valia?

Não serão as próprias equipas desportivas, as próprias federações desportivas, os próprios comités olímpicos, gananciosos por medalhas, a promover uma cada vez maior inclusão de atletas transgénero nas modalidades femininas?

E por fim, não será a tentativa de inclusão, uma forma de exclusão?

Laurel é o primeiro exemplo nos jogos olímpicos, mas não o único no sector desportivo, que de há uns tempos para cá tenta lidar com esta nova dinâmica de géneros.

Como mulher, vou respondendo às minhas próprias questões, mas admito que o meu olhar possa estar enviesado, incapaz de ver para além da minha realidade como mulher e que as minhas respostas possam estar minadas por coisas várias, como o medo. No entanto, tentando olhar da forma mais despojada possível sobre o assunto, não me chegam respostas, apenas mais questões, que ultrapassam o desporto, irradiam em todas as direções, questões sem respostas fáceis.

21.06.21

Uma Tarde na Fundação Calouste Gulbenkian...


Filipe Vaz Correia

 

 

 

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Nas palavras do tempo...

Passeei durante a tarde com os meu sobrinhos pelos jardins da Fundação Calouste Gulbenkian, por entre, descobertas e conversas. Esvoaçámos por esconderijos mágicos e patos, galinholas e peixes, sapos e tartarugas, pessoas e os malditos pombos. Um infinito mundo por descobrir em busca da ansiada gelataria que nos prometia deliciosas iguarias... A minha querida sobrinha optou por um gelado de baunilha em cone de bolacha artesanal, o meu sobrinho escolheu uma Waffle de chocolate, a minha mulher um crepe com bola de gelado de baunilha e eu... Surpreendi escolhendo um crepe de açúcar com canela. Infelizmente a espera pelos crepes foi demasiada mas o waffle foi apelidado como o melhor do mundo. No entanto, o que fica amarrado à alma são os momentos, esses momentos nas entrelaçadas palavras que nos unem, que nos ligam. Desfrutámos de uma tarde primaveril, com raios de sol e pedaços de vento, por entre conversas nossas. O que poderá ser melhor do que esse acrescentar de momentos para a eternidade? Por instantes a Gulbenkian se transforma numa gruta de canaviais, como se estivéssemos perdidos numa qualquer mata Atlântica, claro que repleta de visitantes e turistas. As conversas voaram desde o dia a dia  no colégio até à Coreia do Norte... O meu sobrinho é um menino, de 13 anos,  curioso pela geopolítica mundial, dando assim asas a essa curiosidade própria de um jovem inteligente e atento. São estes momentos que dão sentido ao acumular dos dias, olhando para eles e observando os Seres Humanos que dali estão a brotar, nessa vontade de questionar e aprender, de secretamente ensinar, sem que se apercebam de como estão mais sapientes do que os seus velhos tios, por vezes, quebrando dogmas, estilhaçando padrões instalados que não são mais do que paredes à espera que alguém as empurre. Não sabia que tinha tantas saudades da Gulbenkian, não fazia ideia de que era possível voltar a caminhar por aqueles jardins como se fosse a primeira vez, podendo lhes contar que foi ali, naquele local, que os tios se encontraram há mais de 20 anos, aquando do primeiro mês de namoro, para trocar presentes antes do mais esperado jantar da minha vida...

Ciclos que se fecham, ciclos que se abrem, que infinitamente se entrelaçam.

Com amor, destes Tios que tão bem vos querem.

 

 

Filipe Vaz Correia

 

 

 

 

 

 

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