Os especiais
Sónia Pereira
Tinha 9 ou 10 anos quando a minha mãe me comprou o livro “O Ano da Peste Negra” da colecção Viagens no Tempo e li-o num ápice. Os livros anteriores da mesma coleção também foram devorados num par de dias. Era uma forma divertida de aprender um pouco de história com muita aventura à mistura. Crianças e um cientista que viajavam no tempo até ao ano 1348, chegando a um Portugal fustigado pela peste negra. Anos mais tarde, dei de caras com o Camus e a sua “A Peste”. Potencialmente distópico, mas afinal não.
O conceito de uma pandemia a nível mundial nunca me pareceu descabido, assunto que me despoletasse qualquer tipo de pensamento conspiracionista. Até porque, bastava olhar para o passado para perceber que não somos assim tão especiais e intocáveis. Toda a nossa história está cheia de desgraças contagiosas várias. Num mundo globalizado, uma doença globalizada é uma espécie de consequência sem qualquer incongruência, um desenlace óbvio numa narrativa ligeira.
No entanto, com os avanços científicos, os povos ocidentais julgavam-se, e julgam-se ainda, resguardados de certas hecatombes. Cólera em África, normal, Zika no Brasil, rotina, HIV – só atinge “os que se metem a jeito”, gripe asiática? Ui, isso já lá vai há que tempos (sessenta anos lavam mesmo as memórias mais resistentes), gripe espanhola? Do que eu havia de me lembrar. Outros tempos, outros tempos.
Temos uma grande dificuldade em gerir tudo aquilo que perturbe a nossa rotina. E isso acontece por uma razão muito simples – a sociedade ocidental, os povos desta sociedade ocidental, acham-se, de certa forma, especiais, os escolhidos. Caminhamos imperturbáveis perante as notícias exteriores de caos, de miséria, de guerra, de doença. Para dizer a verdade, as próprias notícias são afrontosas, perturbam o nosso bem estar, deixam um rasto de descrença, de infelicidade que, embora momentâneo, não o queremos a manchar a nossa vida. A nossa vida tem uma estrutura, segue um guião, não queremos cá nada que altere a nossa liberdade de buscar a nossa felicidade (e sim, a doença, a miséria, perturba a nossa felicidade).
E aqui, neste ponto, acabam-se as minhas certezas sobre a pandemia.
Noto que, de semana para semana, cada vez ando mais confusa, cada vez navego em águas mais agitadas pela dúvida. Observo o esgrimir de argumentos como a um jogo de ténis, com a bola a riscar o ar da direita para a esquerda e da esquerda para a direita. Um jogo num movimento contínuo, sem interrupções, que me suga a alma pelo desassossego que causa.
Haverá um aproveitamento dos laboratórios farmacêuticos da situação pandémica?
Haverá um aproveitamento dos Estados da situação pandémica para restringir liberdades e ações dos seus cidadãos?
Haverá um aproveitamento de certas forças políticas para capitalizar o descontentamento provocado na população pelas restrições várias?
Haverá um equilíbrio, A harmonia ideal, entre confinar (restringir o direito à circulação, ajuntamentos, festas, convívio familiar, etc.) e a manutenção de uma rotina que permita o funcionamento de empresas, serviços, restauração e afins?
Ou o melhor será simplesmente deixar andar, afinal uma dezena de mortos pela doença por dia não seria nada de muito escabroso (morre mais pessoal de doenças cardiovasculares, doenças oncológicas ou fatalidades várias)?
Será justo deixar uma sociedade em espera, crianças, adolescentes, adultos que necessitam do seu trabalho para sobreviver, só para salvar (potencialmente) uns quantos idosos?
Mas será sequer ético colocar a questão anterior? Não deveríamos fazer o que estivesse ao nosso alcance para proteger a vida humana independentemente da idade da pessoa em questão?
Pois, mas fará sentido devotar todo um sistema de saúde a uma doença que pouco mata, quando esse mesmo sistema acaba por marginalizar pacientes com outras doenças também elas graves e, sem cuidados, fatais?
Temos áreas que, com a pandemia e as suas restrições, caminham para a ruptura. A área das artes sairá incólume de todas estas regras castradoras ou o que restará será uma sombra, um nada do que poderia ser? E o que será de uma sociedade sem artes?
Será que todo este estrebuchar com regras e restrições não será apenas fruto de nos sentirmos especiais, seres impossíveis de contrariar?
E não serão os dados pandémicos, de certa forma, empolados pela comunicação social, sempre sedente de sangue? Será a situação assim tão grave ou afinal o que vemos é apenas uma manipulação do nosso medo?
Ou será que aquilo que temos é apenas a versão ligeira controlada por todos os esforços restritivos? Onde estaríamos, quantos de nós teriam perecido, se tivéssemos optado por deixar andar?
E as vacinas? Funcionam, não funcionam, reduzem o número de infecções graves e consequentes mortes ou só servem para encher os bolsos corporativos de certas empresas?
Pois… não sei. Os dias seguem numa viagem em sistema de navegação à vista. Adaptação, fluir com a corrente, observação com interesse das mudanças dos comportamentos, do impacto dessas mudanças nos outros, nos trabalhos, na socialização, na forma de estar, na gestão dos medos, das aspirações, dos sonhos das pessoas.
E, numa última tentativa de preservação mental, opto por deixar de procurar as respostas para todas as perguntas anteriores. Perguntar chega.