Como mulher, é difícil (para não dizer impossível) ficar indiferente às noticias que nos chegam nos últimos dias do Afeganistão.
A tomada de poder pelos taliban, ressuscita os medos de que, novamente, metade da nação afegã, seja obrigada a ficar na sombra, presa dentro de casa, sujeita a raptos, casamentos forçados e violações. Sem educação, sem direitos. Escravizada até morrer.
É um apartheid de género que gradualmente se transforma num genocídio de género…
Eu gosto de entender as coisas, de perceber porque acontecem, o que está na sua génese, e esta “cruzada” taliban contra as mulheres sempre foi incompreensível para mim.
É certo que a violência contra as mulheres, não é exclusiva do Afeganistão. É um problema em todo o mundo, Portugal incluído, basta ver quantas mulheres são assassinadas por ano pelos seus maridos e namorados.
Os movimentos #MeToo e Time’s Up destacaram os desafios que a maioria das mulheres enfrenta diariamente e começaram a mudar atitudes, mas ao mesmo tempo provocaram um backlash (uma reação contrária) com muitos homens a insurgirem-se e a gritarem “caça às bruxas” refletindo o medo de acusações falsas e injustas.
No ocidente o sexismo e a discriminação podem se ter tornado menos evidentes, mas o assédio sexual e a misoginia continuam a existir (frequentemente de forma mais subtil, mais complexa e por isso mais difícil de detetar), no entanto, nós mulheres temos direitos, podemos votar, apresentar uma queixa, sair à rua para protestar, ter uma vida profissional, escolher com quem casar e tantas coisas mais que neste preciso momento estão a ser negadas às mulheres afegãs.
As políticas segregacionistas dos taliban em relação às mulheres nada tem de subtil. Pelo contrário, elevam o ódio contra o género feminino a novos recordes.
Mas porquê?
Do que pude perceber, nas minhas recentes leituras sobre o tema, a sua política baseia-se numa versão distorcida das conceções tradicionais pushtunwali, e do lugar e papel da mulher na sociedade. Nas regiões pushtun (Este e Sul do Afeganistão e partes adjacentes do Paquistão), de onde vem a maioria dos líderes taliban as mulheres sempre levaram uma vida restrita, pois a sua virtude era considerada parte integrante da honra da família e do clã.
No Afeganistão, porém, mesmo fora das regiões pushtun, as mulheres sempre foram tratadas como inferiores aos homens, tanto económica quanto legalmente. Sob a sharia (lei islâmica), por exemplo, as filhas recebiam metade da herança dos filhos e o testemunho feminino contava metade do testemunho masculino no tribunal.
(Se pensarmos bem, na maioria dos países do mundo, incluindo Portugal, durante muito tempo, a situação não foi assim tão diferente. A mulher precisava da autorização do pai ou do marido para quase tudo, e nem direito de voto tinha…)
Entretanto as marés da secularização e a modernização trazida pelo século XX vieram abrir portas a um novo pensamento e proporcionaram maiores oportunidades para as mulheres afegãs participarem na vida pública, especialmente nas regiões norte e nas áreas urbanas.
Foi a conquista comunista do Afeganistão em 1978 que deu início ao processo que levou em última análise ao atual declínio do status das mulheres no país.
Durante o período de governo comunista (1978-1992), as mulheres em Cabul e em outras grandes cidades controladas pelo governo, desfrutaram de uma liberdade totalmente nova, enchendo as universidades (e ultrapassando os homens em número de alunos), servindo em unidades paramilitares, trabalhando em todos os setores profissionais e servindo em cargos de alto escalão no governo.
Ao mesmo tempo que isto se passava, os campos de refugiados do Paquistão proporcionaram refúgio para os mujahideen (guerreiros sagrados islâmicos) que lutavam contra a União Soviética e o governo afegão (a quem acabaram por derrotar) e transformaram-se num terreno fértil para a nova ideologia islâmica que, em combinação com as condições de vida dramaticamente diferentes das aldeias afegãs tradicionais, restringiu a liberdade de movimento das mulheres e levou a um recuo das mentalidades.
Os campos geraram uma nova geração que cresceu numa sociedade terrivelmente distorcida, onde o status das mulheres e o controle sobre o seu comportamento e atividades se tornaram o principal símbolo da diferença entre os governos comunistas e os seus oponentes mujahideen.
Quando chegaram ao governo, a política dos taliban em relação às mulheres também se tornou importante porque, praticamente, eles não tinham outra política. Não existiam governantes capazes, nenhuma ou quase nenhuma indústria, não havia preocupação com a saúde pública, infraestruturas ou educação. A principal razão da sua existência era lutar contra os seus oponentes do norte.
As únicas políticas que eles podiam introduzir eram então aquelas que simbolizavam a sua identidade cultural e religiosa.
Entretanto passaram-se 20 anos e a história volta a repetir-se…
Alguns observadores e especialistas em movimentos radicais dizem que, à medida que amadurecem, estes movimentos tendem a moderar-se. Será este o caso dos Taliban?
Será que depois da vitória na guerra interminável do Afeganistão, se forem reconhecidos pela comunidade internacional como um governo legítimo, eles finalmente vão fazer o que tantas vezes prometeram e moderar a sua postura em relação às mulheres e minorias étnicas?
É difícil (eu diria mesmo impossível) de acreditar, vendo as imagens e relatos que nos chegam diariamente do Afeganistão… E mesmo que esse cenário fantasioso ocorresse, a triste situação das mulheres no país continuaria como está, por muito tempo ainda… Tempo demais.
E até lá, quem as vai conseguir salvar?