A folha de plátano seca que (sobre)vive dentro de Ficções de Jorge Luis Borges, caiu quando folheei o livro.
Baixei-me para a apanhar e a minha memória voou veloz até aquela longínqua tarde de outono em que passeamos de mão dada por Buenos Aires.
O vento soprava suave, porém com força suficiente para derrubar as folhas secas das árvores altas que povoam o vibrante barrio de Palermo. Borges viveu ali e dizem que Che Guevara também.
Não sei se é porque nasci no outono, mas sou completamente apaixonada pela estação dos castanhos e dourados, amarelos e vermelhos. No outono, parece-me, as cores são mais intensas e as sombras mais longas… sonho e realidade esbatem-se e misturam-se como as tintas de uma aguarela.
Ainda as consigo ouvir… as folhas secas a estalar sob os nossos pés enquanto caminhávamos pelo Parque Três de Febrero. Se fechar os olhos consigo ver novamente a pérgula branca, o jardim do poeta e o rosedal. Regresso à esquina das Avenidas Figueroa Alcorta e Sarmiento, onde agora fica um planetário, mas em tempos existiu o Lo de Hansen, um dos salões de dança mais importantes da história do tango. O salão foi-se mas os bailarinos ainda lá estavam, agora cá fora no jardim, num show improvisado para os turistas.
Paramos um pouco para assistir, admirando a coreografia complexa e a paixão do casal.
“O tango é um pensamento triste que se pode dançar" dizia Enrique Santos Discépolo, e tinha razão.
É uma dança dramática, cheia de sentimento, tristeza e uma certa agressividade. Mas também é sensual, sexual, tem movimentos que nos prendem o olhar e uma música que nos toca o coração (e outras partes do corpo).
Seguimos caminhando. Melancólicos.
As folhas continuavam a cair… peguei numa, cor de ouro, e guardei-a como lembrança na mala que trazia a tiracolo.
O céu imensamente azul, ganhara com o passar das horas uma nova cor. Primeiro ficou rosa, depois lilás. O ritmo da cidade também mudou. De repente as ruas pareceram ficar vazias, as casas e palacetes antigos, decadentes e abandonados...
O vento voltou a soprar, agora menos agradável.
Refugiamo-nos numa livraria. Que melhor lugar pode haver?
Chamava-se Libros del Pasage, e tinha enormes estantes de madeira carregadas de obras da literatura argentina, poesia e filosofia e tinha também escadas que iam do chão ao tecto.
Descobrimos um exemplar de Fervor de Buenos Aires, o primeiro livro de poesia de Jorge Luis Borges. Não resisti a comprar. O Ficções, foi-me oferecido.
Sentamo-nos no café da livraria com duas chávenas de chá a ler poemas e passagens dos livros. Ao fundo, baixinho, tocava o muito apropriado Otoño Porteño, de Astor Piazzolla.
“Coloca a folha de plátano no livro” — pediu-me, quando íamos a sair para a rua.
Eu assim o fiz e ela ali ficou. Até hoje, quando caiu, carregada de lembranças de uma bonita tarde de outono em Buenos Aires…
...Buenos Aires é a outra rua, a que nunca pisei, é o centro
secreto das quadras, os pátios últimos, é o que as
fachadas ocultam, é meu inimigo, se ele existir, é a
pessoa a quem meus versos desagradam (também
me desagradam),
é a modesta livraria em que talvez
tenhamos entrado e que esquecemos, é essa rajada
de milonga assoviada que não reconhecemos e que
nos toca, é o que se perdeu e o que será, é o ulterior,
o alheio, o lateral, o bairro que não é teu nem
é meu, o que ignoramos e amamos.
Jorge Luis Borges | "Poesia Completa", (Tradução: Josely Vianna Baptista)
Memórias de um outono em Buenos Aires, já antes publicadas no meu blog The Travellight World