Ainda em Sciacca... A Conversar com o Mediterrâneo sobre o Hoje sem o Amanhã.
Bruno
©Bruno Nunes dos Santos
Se alguém fez ou criou tudo isto, então, há que admitir que foi um terrível desperdício. Ninguém precisa de criar uma quantidade tão insana de coisas só para provar que é criador. A abundância é o caos, e o caos é uma espécie de insanidade, ou embriaguez. Sim, o intelecto humano consterna-se com a redundância deste desempenho criativo.
Karel Čapek, in "A Fábrica do Absoluto"
Mais uma semana, e não altero o tema, mantenho-me por Sciacca. Talvez porque, como dizia o grande maestro Ricardo Mutti numa grande entrevista que deu em 2021 (e agora reforçada em Julho) ao “Corriere della Sera”, se não me enquadro no mundo, esse mesmo mundo não vai mudar por causa de mim e por isso tenho de ser eu a afastar-me. Sim, existem dias assim, mesmo para uma pessoa como eu que nunca atira a toalha ao chão. Também ajuda a ganhar forças para o combate, é um facto, uma espécie de licença para pura abstração e para conseguir alguma sanidade mental.
Em Sciacca, como em tantas outras geografias, tudo ainda é puro, para o bem e para o mal. Não obstante acreditar que o desenvolvimento se dá sem imposições, com luta e muitos desafios, muitos rasgares de regras e até uma certa rebeldia, mas sem imposições. E num mundo onde cada vez mais a maioria embriagada pela abundância e pelo luxo está adormecida, são as muito pequenas minorias que parecem ter sempre razão - Lenine ficaria enternecido por ver as suas palavras fazerem hoje tanto sentido (ou darem sentido ao que não o tem).
Em Sciacca não se produzem discursos como “abaixo a tirania de X e os seus atentados à sociedade, viva sim a nossa visão pois só ela é válida e pelo bem todas as outras têm de ser destruidas” - moral e liberdade são atualmente isto. Os extremos e a polarização acentuam-se e na embriaguez a que já fiz menção, arrisca-se a que possamos perder uma das mais importantes e difíceis conquistas do ser humano: a capacidade de decidir o seu próprio destino, de reinvindicar e de questionar, de ser ouvido. Tão dificil de conquistar que muitos territórios por esse mundo fora ainda nem sequer sabem o que isso é e se ousarem sequer falar em tal coisa é bem possível que acabem com uma corda esticada à volta do pescoço.
Enquanto o Mediterrâneo brilha e cria um espelho de água singular nesta costa, quase como se transforma num monitor que nos mostra como a embriaguez do ócio, da despreocupação e do adormecimento destruiu todas as grandes civilizações que durante milénios o ocuparam. É dos grandes momentos de prosperidade e da forma como não sabemos lidar com os mesmos que as grandes civilizações se afundam.
O mundo evoluiu, e na verdade, com a passagem do tempo a nossa visão vai-se transformando - até aos 18 anos olhamos para os miúdos de 12 e perguntamos como é possível ser-se assim. Até quando entramos na universidade e olhamos para os tempos do secundário. Não obstante, o mundo mexe-se cada vez mais rápido e a apatia e o espetáculo dão lugar a uma total ausência de cidadania e de espírito crítico. O caminho fértil para aqueles (e isto é só um exemplo) que criticam instituições milenares como o Cristianismo e depois utilizem exactamente os mesmos métodos que este utilizou para eliminar tantos povos, culturas e modos de vida. É um caminho fácil, até porque as escolas não mais ensinam a raciocinar minuciosamente. E como o Professor David Perkins defende, é um facto que escolhem e apreciam os candidatos com o QI mais elevado, pois são essas que conseguem gerar mais argumentos - nem sempre os melhores, convenhamos.
Na verdade, muitos desses activistas(até porque hoje terrorismo já se confunde com activismo) que dizem ter tantas qualidades, acentuam distâncias e flagelos que naturalmente já estavam a ser ultrapassados - não eliminados, mas ultrapassados - como se só um tolo pudesse achar que o mundo perfeito é aquele em que seremos todos iguais ou que seremos felizes com a imposição de culturas - nunca foi, nunca será e quando se tenta tal empreendimento ao invés de termos um grande bloco com fundações deveras resistentes, temos um monte de escombros com muitas marcas de sangue.
E numa época em que tanto se fala, estuda e paga por palestras sobre liderança, não deixa de ser paradoxal que faltem talvez Homens e Mulheres que saibam liderar, que saibam ser liderados - infelizmente muitos deles estão de olhos vendados ou com um projétil no meio da testa noutras geografias e nem sejam utilizados como exemplo pelos grandes activistas do Ocidente que em muitos casos não andam distantes de práticas que fariam um qualquer Rust ou mesmo um Goebbels rejubilar. Activistas que dos seus bairros de elite e das suas bolhas nos querem impor em alguns casos uma verdadeira ditadura sob a capa do Humanismo, da Liberdade e da Tolerância - afinal, de tolerância também se revestiu a Revolução Francesa, uma tolerância que era tão mas tão séria e pura que tinha de ser salvaguardada a todo o custo pelo afiado moral da guilhotina.
Agora com redes sociais, com gadgets e brinquedos com rodas de última geração e de jantares gourmet (porque já não há tascas) podemos estar a percorrer o miserável caminho, alegres e contentes como numa alegre e festiva danse macabre em direção ao inferno.
___________________________________________________________________________________________________________________________________________________
A ler: as duas entrevistas de Ricardo Mutti, um napolitano que faz bem jus às suas origens e um verdadeiro senhor da música, nem sempre bem visto por muitos, mas impecável em muitas das suas ações, inclusive humanitárias.
A ouvir: a composição que Mutti escolheria para o fim da vida, das coisas… O “Requiem em Dó Menor” de Luigi Cherubini. Quem conhece facilmente perceberá porquê, quem não conhece, e pretender gastar três quartos de hora sem acrescentar nada à Humanidade, vai perceber também.
A ver: “Underground - Era Uma Vez um País” de Emir Kusturica - um regresso às salas de cinema e bem a propósito. Além disso, uma verdadeira pérola.
A comer e a beber: abordei o “Il Faro” a semana passada, e esta semana, mais para o centro de Sciacca, a “La Trattoria Vecchia Conza” faz as delícias de quem adora um bom petisco com toques de mar. A acompanhar, um Greco Bianco da Apúlia é o ideal para tais petiscos e um verdadeiro embaixador dos aromas daquelas terras, fica a sugestão do l'archetipo.