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sardinhaSemlata

Um espaço de pensamento livre.

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16.09.21

761 XXX XXX


The Travellight World

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Durante muitos anos, bastava ligar a televisão por 15 minutos, durante o período da manhã para perceber que a intercalar uma série de histórias que puxavam à lágrima fácil, receitas de cozinha e cantorias, tínhamos um simpático e sorridente apresentador/a a gritar para as câmaras: “marque o 761 XXX XXX”.
Hoje, — depois da recomendação em 2020 da Provedora da Justiça para abolir este tipo de chamadas, com vista a reforçar os direitos dos consumidores e a proteção de pessoas mais vulneráveis, e da subsequente criação pelo Governo de um grupo de trabalho para rever o regime dos concursos e passatempos — as televisões generalistas tornaram-se um pouco mais subtis, com a RTP inclusive a decidir utilizar as chamadas de valor acrescentado apenas em campanhas de responsabilidade social e humanitárias, e a SIC e a TVI a concentrarem os apelos durante a semana só aos últimos minutos dos programas matinais.

… E no entanto, a situação mantém-se, principalmente aos sábados e domingos, quando toda a subtileza é deixada para trás e os incentivos à chamada 761, na SIC e na TVI, são constantes ao longo do dia.

Já tanto se falou e escreveu sobre este tema que, com exceção da Câmara Municipal de Ponte da Barca (*), a maioria de nós está consciente que os números com os prefixos 760 e 761 dizem respeito às chamadas de valor acrescentado, também conhecidas por IVR (Interactive Voice Response), que por regra nunca estão incluídas nos pacotes das operadoras telefónicas. Ligar para um destes números significa portanto ver cobrado um valor extra (+ IVA) na conta mensal do telefone.

…Mas isso não impede os portugueses de continuar a gastar milhões nas IVR’s.

O apelo pode ser menos frequente, mais curto e até subtil, mas continua lá, no canto do ecrã, em rodapé ou nas palavras do apresentador. “Ligue”, dizem-nos, “hoje pode ser o seu dia de sorte, só tem de arriscar”, “é só 1 euro e pode ganhar um grande prémio em cartão” , “com este dinheiro pode resolver os seus problemas financeiros” , “Não ganhou hoje, ganha amanhã, tem é de tentar…”

O apelo é tão alegre e otimista, traz tanta esperança na voz que há quem ligue e gaste. Alguns pouco, outros muito, outros talvez até demais. As hipóteses, como em qualquer jogo de sorte (ou azar) não são muitas mas, já diz o povo “a esperança é a última que morre”.

Os sorteios televisivos existem há muitos anos e perduram graças à sua importância como fonte de lucro para as estações televisivas. Basta lembrar que em resposta ao parecer da Provedora da Justiça, TVI e SIC emitiram um comunicado onde partilhavam da mesma opinião: a proibição de chamadas de valor acrescentado teria “forte impacto” nas televisões bem como uma “queda significativa” de receitas fiscais para o Estado.
Prova disso são os 9,4 milhões de euros com chamadas de valor acrescentado que a SIC conseguiu nos primeiros seis meses deste ano — De acordo com a apresentação de resultados do primeiro semestre do grupo Impresa “As receitas de IVR’s cresceram 38,1%”.

Pois… mas estes sorteios são jogo e se a grande maioria das pessoas consegue controlar-se e gastar apenas aquilo que pode, outros há que são mais vulneráveis.

O jogo é uma adição grave (para mim, uma das mais graves, porque o viciado pode chegar “ao fundo do poço” sem que haja um declínio físico evidente que alerte quem está à sua volta).

Mas qual é o problema? qual é a diferença entre fazer uma chamada para a televisão para se habilitar a um prémio e jogar no Euromilhões ou comprar uma raspadinha? Não é tudo a mesma coisa?

É, é tudo a mesma coisa, mas não podemos ignorar o facto de que a televisão e já agora, a internet, facilitam significativamente o crescimento do jogo. Chegam a mais pessoas. São fáceis, cómodas e apresentam-se como seguras. O jogador pode manter o seu anonimato e pensa ter um potencial de ganho maior com uma despesa menor.

Tem também um marketing enorme e constante — já repararam a quantos anúncios de plataformas de jogo somos expostos diariamente?
O apelo ao jogo está por todo o lado e ao chegar tão facilmente à população em geral pode potenciar o problema e colocar em risco não só aqueles que já tem uma predisposição para este vício, como outros que à partida não a teriam.

Por causa da sua imaturidade e impulsividade, a vulnerabilidade ao jogo é maior por exemplo, para as crianças e adolescentes. Da mesma forma, os idosos que apresentem dificuldades cognitivas, resultantes da idade podem ser mais facilmente manipulados e incentivados a jogar por pessoas que todos os dias veem na televisão.
E estas duas faixas etárias são precisamente as que mais assistem aos programas de entretenimento, não são?

É importante dizer que as operadoras telefónicas dão a possibilidade de barrar as chamadas de valor acrescentado, mas nem sempre isso resolve o problema se o vício do jogo já tiver ganho raízes…

 

(*) A Altice acionou judicialmente a Câmara de Ponte da Barca, em Julho deste ano, por incumprimento no pagamento de mais de 85 mil euros de chamadas de valor acrescentado feitas em 2020 para o concurso 7 Maravilhas de Portugal, transmitido pela RTP. A câmara alega que as chamadas estavam incluídas no contrato, a Altice diz que não.

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