A Arte Perdida de Falar com Estranhos
Bruno
Imagem: Bruno Nunes dos Santos e GC
Para se conversar não é preciso que o outro diga nada (...) uma conversa é um nada de estar só em voz alta.
Vergílio Ferreira, in "Signo Sinal"
Por estes dias, um artigo do "The Economist" atraía a minha atenção simplesmente pela exaltação da sublime arte de falar com estranhos. Confesso que me revi de imediato nas linhas que abordavam três leituras de três diferentes livros sobre o tema. Apesar do meu low profile, não perco uma oportunidade para quebrar o gelo, sobretudo com estranhos - talvez tenham sido os beirões que tantas vezes fizeram com que eu e a minha irmã, a caminho do Entroncamento, tivéssemos a singular experiência lanchar das mais apetitosas sandes de queijo ou até dedilhado o melhor frango guisado que me lembro em pleno regional ou no Alfa (agora Intercidades). Ou então foram os recrutas que seguiam para a Ota, Tancos e Santa Margarida. Aliás, tantas e tantas vezes me recordo das boleias que depois faziam com que, no caso de Tancos, estes chegassem mais depressa à base.
Lembro-me também, que lá por casa, o meu pai me deixava sempre o alerta de nunca abrir a porta a estranhos, não obstante deixava-me sempre encetar diálogos com estes e não corria em pânico a afastar o filho daquelas pessoas tenebrosas, bem pelo contrário. Na verdade, se eu fosse um miúdo e o meu pai estivesse por cá nestes tempos de "liberdade", provavelmente já estaria separado de mim por maus-tratos a uma criança e sobretudo por não me ter fechado em casa com um smartphone na mão a controlar os meus movimentos nas redes sociais.
Na verdade, chega até a ser paradoxal que falemos no mundo digital com pessoas que nem sabemos se são "reais" mas depois nos castremos tanto face à hipótese de uma conversa ao vivo. É mais fácil e menos arriscado do ponto de vista legal encetar um flirt digitalmente do que apenas conversar com alguém na rua. Mas isso seria tema para outra conversa.
Falar com estranhos, atualmente e a partir do meu ponto de vista, pode ser a solução para sair das tribos em que tendemos a encerrar-nos cada vez mais, pode ser a oportunidade de encontrar novas experiências, novas formas de encarar o dia-a-dia e até de partilhar interesses. Reforço esta minha posição com os três autores abordados no texto do "The Economist" quando são unânimes a defender que para além de prevenirem conflitos, aqueles que criam algum engagement com estranhos praticam um ato de pessoas efetivamente humanas e civilizadas e que contribuiu para uma verdadeira paz social. Isto leva-nos à velha máxima de Newton que nos leva sempre para a estulta e insistente máxima do levantamento de muros ao invés da construção de pontes.
Um aspeto que rapidamente me deixou absorvido neste artigo, foi a opinião do autor do mesmo ao defender que as formas mais sofisticadas de interação entre estranhos ocorrerem em sociedades cronicamente divididas, apresentando para isso dois exemplos que também tive oportunidade de corroborar ao vivo e a cores, nomeadamente a Irlanda do Norte e o Líbano. No Líbano tive oportunidade de estar com duas facções completamente opostas a discutir o conflito do médio-oriente sem copos a voarem e o mesmo aconteceu na Irlanda do Norte. É deveras interessante, sobretudo no caso da Irlanda do Norte, onde os muros físicos ainda pintam a paisagem de Belfast.
Nem sempre os povos hospitaleiros, como alguns apreciam autointitularem-se, seja por uma questão de acreditar em algo que não é verdade seja por uma questão de marketing, são propriamente os melhores exemplos em termos de abertura ao outro, sobretudo se um estranho.
Não obstante, muitos dos biases e concepções que tinha sobre determinadas situações, culturas ou estados mudaram completamente ou pelo menos tornaram-me menos radical, depois de preenchidos momentos de interação com estranhos. Mesmo que isso significasse que atrás da cadeira, em repouso, estivesse uma Kalashnikov carregada ou, num contexto de trabalho, gerasse uma situação menos agradável para alguém que não estaria disposto a abrir os horizontes de ouvir o outro - uma tendência muito comum para nos comportarmos com uma espécie de Ichabod Crane, personagem do conto de Washington Irving e acabarmos atacados pelo "Cavaleiro sem Cabeça". Uma nota para o facto de Ichabod, em hebraico significar "sem glória" numa alusão ao Primeiro Livro de Samuel.
Por isso, talvez falar com estranhos, possa ser um ato de cidadania, sobretudo até aqueles estranhos mais calados e menos efusivos. Provavelmente teremos melhores surpresas e não tenho dúvidas que sairemos mais enriquecidos nessa linha de dois sentidos do que propriamente na linha de um sentido em que muitos estranhos que escutamos, vemos ou lemos (e que até julgamos conhecer) em televisões, redes sociais e publicações nos confrontam. Se transportarmos isso para o nosso trabalho, então aí as surpresas serão mais que muitas e o "estranho" da linha ou do cubículo ao lado poderá ser o colega que nunca imaginaríamos ter.
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Para ler: Não os tendo lido ainda, pois ainda estão em trânsito, nada como dedicar umas horas a descobrir "Hello Stanger" de Will Buckingham; "The Power of Strangers" de Joe Keohane e "Fractured" de Jon Yates.
Para ouvir: dentro ainda da temática do artigo, talvez não fosse bem a ideia que Peter Gabriel, Tony Banks ou Mike Rutherford tivessem para esta música, mas os Genesis são uma presença habitual cá em casa, até pela proximidade que temos com um deles. Carpet Crawlers para ouvir mais logo, na companhia de um Bache Gabrielsen - um Fine Champagne XO que só peca, no meu caso, por estar no fim da garrafa. E That's All, como diria o nosso Phil.
Para ver: passar no Nimas e assistir aos múltiplos filmes do ciclo Jean-Luc Godard. Rever "O Acossado", "Os Carabineiros" ou até "O Desprezo" entre outros é uma aposta ganha.
Para comer e beber: março é o mês do Sável e o melhor come-se na... minha casa. Frito e com a açorda das próprias ovas ou então de escabeche é daquelas coisas que enfim. Se forem a Vila Franca de Xira, pelo concelho não faltam opções e é extremamente difícil destacar as melhores. A acompanhar um bom sável, um branco da região: o Tyto Alba da Companhia das Lezírias.