A interpretação dos sonhos
JB
Neste nosso tempo em que a realidade supera qualquer ficção, em que o barril de pólvora onde vivemos parece cada vez mais perto do clímax, talvez os sonhos apresentem um refúgio. Não falo dos sonhos que todos temos acordados: 'quem me dera ganhar o Euromilhões' (sonharão os mais materialistas); 'quem me dera que houvesse paz no mundo' (sonharão as misses); 'quem me dera que se pudessem castrar fisicamente certas pessoas' (sonharão os apoiantes do Chega). Nem sequer falo dos sonhos, esses deliciosos petiscos da época natalícia. Falo do sonho no sentido estrito: aquilo que a nossa mente anda a fazer enquanto dormimos e mais importante ainda, aquilo que de facto nos lembramos quando acordamos. Falo no momento em que o nosso inconsciente está mais vivo e comunicativo e que se consegue manifestar mais livremente, enganando a censura da consciência e até colaborar com ela.
Não se pode falar de sonhos sem falar de Freud, o que para mim é óptimo: gosto imenso de falar de Freud. Segundo Segismundo (Freud para os menos íntimos) o sonho é o guardião do sono, é algo que a nossa mente inconsciente constrói para prolongar o sono. É por isso que quando sonhamos com um comboio a apitar, acordamos e percebemos que afinal é o maquiavélico despertador. O sonho permite incorporar o incomodativo ruído e prolongar, nem que seja uns segundos, o descanso. Observou que os sonhos são como uma espécie de curtas metragens, que criamos todas as noites. O cenário dessas curtas metragens são acontecimentos recentes, muitas vezes do próprio dia ou do anterior, mas que os argumentos das mesmas são muito mais profundos e reveladores do inconsciente. Disse-nos ainda que no seu entender, os sonhos são concretizações de desejos mais ou menos inconscientes, mas que não são óbvios de decifrar. Este ponto em particular levantou muitas objecções, muitos de nós temos sonhos desagradáveis. Como é que isso pode ser a concretização de um desejo? Uma das pessoas que levantou essa objecção foi uma paciente de Freud: um sobrinho tinha falecido há pouco tempo, e ela recentemente tinha sonhado que o outro sobrinho (irmão do que tinha falecido e filho da sua irmã) também teria morrido. Ora ela gostava muito do sobrinho e da irmã e esse pensamento provocava uma profunda infelicidade. Como sempre, Freud explica.
Essa paciente tinha contado que no enterro do sobrinho (o que morreu mesmo, no mundo real) tinha encontrado um antigo amor, alguém que ela não via há muito tempo e tinha gostado muito de rever. Isso despertou-lhe sentimentos e desejos profundos, ao ponto do seu próprio inconsciente, durante o sono, ter 'assassinado' o outro sobrinho, não pelo desejo de o ver morto mas como um meio para atingir o fim de rever o seu amado.
Quanto aos sonhos de angústia, vulgo pesadelos ou terrores noturnos, são mais complexos: são situações onde o sonho falha na sua função de 'guardião do sono'. Acontecem geralmente por dois motivos: ou porque os desejos inconscientes que dão origem ao sonho são inaceitáveis para o consciente. Aí não há colaboração do nosso consciente e inconsciente, o sonho falha e a consciência decide acordar-nos (normalmente encharcados em suor) para nos proteger do sonho. O outro motivo é geralmente um episódio traumático. Algo que marca de tal maneira e que não é processado pelo sujeito, algo que causou uma dor tão profunda que nem num sonho é possível suportar.
Isto para dizer que o inconsciente é malandro e a consciência é mesmo só a ponta do icebergue, parece que conta muito porque é o que está visível. Na realidade julgo que o equivalente moderno seria a conta do instagram de uma pessoa, tudo muito bonito e fantástico mas não representa a sua totalidade apenas representa a forma como cada um se vê e/ou quer ser visto. Frases como 'Freud está desatualizado' ou 'ele só pensava em sexo' são de quem está muito mal informado sobre as descobertas de Freud ou tem mecanismos de defesa em hiper alerta para proteger o seu frágil ego. Nunca ouvi dizer que Darwin está desatualizado por exemplo, nem nunca me passou pela cabeça tentar desacreditá-lo só porque não gosto de ser comparado a um chimpanzé.
Resumindo, a realidade pode não estar muito apetecível, mas cuidado com os sonhos. Relembrando uma antiga maldição Israelita:
Cuidado com o que desejas, podes consegui-lo
JB