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sardinhaSemlata

Um espaço de pensamento livre.

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19.05.21

A voz dos deuses


Sónia Pereira

Afastada desde cedo da fé num deus tradicional, a fé à qual fui edificando a minha devoção foi a fé nas competências dos outros, a fé em quem detinha o conhecimento.

Se um médico me dizia que as coisas eram de uma certa maneira, eu acreditava, pois como poderia eu, não sendo médica, questionar as suas indicações terapêuticas? Em cada área de conhecimento, sempre alicercei a minha fé no conhecimento das pessoas que a estudavam, a treinavam e desenvolviam, pois em mim não havia nem conhecimento nem competências suficientes para haver qualquer heresia de dúvida.

Claro está, ao longo dos anos esta minha fé tem sofrido sérios abalos e a perda da inocência mostrou-me que algum conhecimento empírico por vezes basta para pelo menos duvidar, mesmo que não chegue ao ponto de meter em causa. E claro, ao crescer foi preciso pouco para perceber que nem todos dedicarão a mesma devoção e atenção ao conhecimento que desenvolvem, sendo que com essa negligência condenam logo à partida a qualidade das suas competências.

No entanto, dito isto, ainda assim não me sinto à vontade para tomar partido na maioria das vezes, escolher uma das barricadas e entrincheirar-me num dos lados do conflito ou sequer pegar no megafone e começar a gritar soluções.

Sim, porque qualquer área de conhecimento e suas descobertas, conquistas, “produtos”, acaba por gerar conflitos e tomadas de posição.

A dúvida instalada nas competências e conhecimento dos outros e o auge das redes sociais fizeram nascer um fenómeno interessante - a incapacidade da maioria de nós de dizer: “Não sei”, “Não percebo”, “Não tenho uma opinião suficientemente fundamentada” ou ainda “Percebo, sei, mas parece-me demasiado complexo para eu conseguir escolher um lado”.

A admissão de que não se sabe o suficiente não é sinónimo de não ter uma opinião. É óbvio que uma nesga de informação normalmente nos leva a formar uma opinião, mas reconhecer a ignorância ou conhecimento limitado em determinada área deveria ser freio suficiente para evitar a propagação da nossa pouco fundamentada opinião.

Abro uma das minhas redes sociais e é raro o dia que não vejo “porrada digital” entre duas fações de opinadores sobre a pandemia. Leio um, leio outro e encontro informação que aceito como certa em ambos os lados da barricada. No entanto, eles odeiam-se, atacam-se e eu na minha ignorância vejo-os e não consigo mostrar militância por nenhum deles. Por vezes dá-me vontade de rir, porque há mais fervor no ódio, na necessidade de atacar o outro, do que na busca de conhecimento. Cada um deles seguido de perto por centenas de tropas prontas para a guerra cibernética e se algum espião aparecer, na barricada oposta, o mais certo é ser corrido a tiro digital e apedrejado pelo exército local.

Não sou cientista, percebo um zero à esquerda de biologia, anatomia, medicina, ainda menos de química. De epidemias e seus efeitos na sociedade, nada sei. De sociologia, antropologia, patavina. Economia e finanças... nem vale a pena pensar nisso.

Desconfinar, não desconfinar, tomar vacina ou não, tomar esta ou aquela vacina, usar ou não usar máscara, liberdades tolhidas ou mera precaução, impactos económicos/sociais versus impacto traduzido em vítimas/doentes a tratar, todos tópicos sobre os quais fui formando uma opinião, mas sobre os quais percebo que a minha opinião está apenas alicerçada em mim própria, no meu dia a dia, no que quero e gosto e sem ponta de validade científica.

Neste, como em muitos outros assuntos, tendo a deixar-me guiar por aqueles que são os investigadores/instigadores do conhecimento na área, mesmo percebendo que no mundo atual nenhuma área é meramente científica, é também comercial, política, estratégica e muitas áreas estejam dominadas por interesses que, na melhor das hipóteses, poderão ser apelidados de obscuros.

Ainda assim, como qualquer crente que segue o seu dogma religioso, continuo com alguma fé, que vai resistindo ao avançar dos tempos, no conhecimento, nas competências dos outros, na ciência e naqueles que se lhe dedicam como a um primeiro amor.

2 comentários

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    Sónia Pereira 19.05.2021

    Não conhecia o texto da Sophia de Mello Breyner, mas o que mais me saltou à vista deste excerto foi o texto ser um tanto ou quanto machista. Uma mulher, uma mulher num meio rural, com pouca educação, que decidiu lutar, "não se ficar", merece melhor elogio do que a Sophia lhe prestou.
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