Ainda o discurso de Ventura
Sarin
O meu caro sardinha e almirante aqui do cardume, Filipe Vaz Correia, publicou um postal muito interessante sobre a recente, mas não nova, perseguição de Ventura aos portugueses ciganos.
Na altura disse-lhe que guardaria o meu comentário para mais tarde, pois não me era então oportuno - porque o assunto e o discurso me têm merecido várias observações, agora reforçadas pela nova polémica e pela leitura dos comentários ao seu postal.
Queria começar por citar, extrair uma ou outra frase do postal do Filipe, mas sou incapaz: todas elas são importantes, nenhuma é redundante. A mensagem está lá, íntegra e integralmente. Vale a pena reler, creiam. Assim, porque tudo dito sobre o princípio subjacente à liminar negação de tal proposta, avanço para as minhas observações.
Um dos grandes problemas que encontro neste tipo de debate é o da generalização. As comunidades ciganas, à semelhança de todas as comunidades, incluindo os condomínios fechados, são compostas por indivíduos que, só porque ligados por laços de família, vizinhança ou interesse, não têm obrigatoriamente de comungar dos mesmos valores e princípios, nem são responsáveis pelas acções de segundos e terceiros que lhes não sejam dependentes. Esta falácia da generalização inquina qualquer debate que se pretenda sério.
Outro problema bastante evidente é o da tendência para estabelecer analogias, invocando casos concretos de vandalismo, agressão e roubo para, extrapolando, justificar opções. Se vamos por aí, invoquemos também os actos de vandalismo, agressão e roubo a que os indivíduos ciganos estiveram sujeitos até há menos de meios século. Recordemos que os ciganos apenas obtiveram direito de cidadania com a Constituição de 1822. O que não foi suficiente para extrapolar a afirmação de tais direitos, pois as mentalidades não mudam por decreto e a sociedade portuguesa havia andado cerca de 500 anos a tratar os ciganos como os párias que por lei eram, negando-lhes direito a habitação ou trabalho fixo. Como se não bastasse o dilatado prazo entre decreto e aceitação social, as I e II Repúblicas não se revelaram mais amigas das comunidades ciganas, e só com a democracia os indivíduos ganharam plenos direitos perante a lei - e voltámos àquele binómio decreto e aceitação social, que vale também para o outro lado, o dos ciganos escorraçados. As invocações de casos concretos têm destes problemas, há sempre casos concretos de ambos lados, mas por vezes uns são mais profundos do que outros.
Também encontro um outro problema, parecido com este mas diferente na forma: quando se evoca a História relembrando que também a Alemanha nazi começou por confinar judeus e ciganos, há sempre vozes que se levantam para relembrar que houve outros países onde tal se passou. Nunca percebi se pretendem atacar os outros países ou defender a Alemanha, mas o que percebo é que desviam o foco da questão, criando um viés na análise. Comparar as atrocidades cometidas ao longo da história na tentativa de ver qual o regime mais feroz é um exercício que em nada contribui para a discussão, a menos que o objectivo seja legitimar ou, pelo menos, branquear a imagem de algum desses regimes. Também colherá méritos junto daqueles que usam tal viés para descredibilizar o discurso de partidos historicamente conotados com um ou outro regime, independentemente das medidas que defendam - como se tivessem de carregar eternamente o peso da História; usando a tal analogia a que gostam de recorrer, poder-se-ia dizer que os alemães deveriam carregar eternamente a culpa de duas guerras mundiais. E, de analogia em analogia, de viés em viés, continua-se a discutir o acessório e não a questão premente - a dos direitos de cidadania.
Porque é disto que se trata. De um partido que, com a legalidade que a democracia lhe concedeu, quer agora atropelar essa mesma legalidade e cercear direitos de cidadania a [alguns] cidadãos portugueses.
E que usa o argumento da criminalidade entre um grupo da população para sugerir medidas inconstitucionais. Mais uma vez, a falácia. Da misericórdia, apelidando-se vítimas porque pagam impostos e cumprem obrigações. Vítimas serão, não duvido, mas os agressores não são apenas os indivíduos que incumprem, há que responsabilizar também os indivíduos que permitem que incumpram. Porque a lei é mesmo igual para todos, a sua aplicação é que tem falhado. E quaisquer soluções que passem por a alterar devem apontar aos indivíduos e não aos seus ancestrais ou comunidades. Qualquer outro argumento é inadmissível, tal como é inadmissível retirar o foco da questão.
Ou, citando o que comentou o sardinha JB, "Faz sempre lembrar aquele comentário quando uma mulher é violada, ‘viste como ela ia vestida?’. Até podia ir nua, mas não é altura para reparar nisso, é altura para denunciar o crime."
Gostaria ainda de poder apelidar este tipo de discurso, recorrente em Ventura, de inqualificável - no entanto, é facilmente qualificado. Como asqueroso e hediondo. Desqualifiquemo-lo.
E fiquem bem. Com a Tzigane, de Ravel, numa belíssima interpretação de Itzhak Perlman e Zubin Mehta acompanhados pela New York Phillharmonic Orchestra.