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sardinhaSemlata

Um espaço de pensamento livre.

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16.06.21

Amor a Portugal


Sónia Pereira

O conceito de patriotismo sempre foi algo de difícil compreensão para mim. O que eu sou, enquanto cidadã portuguesa, é uma espécie de soma de todas as partes da minha vivência desde a nascença neste país – a língua, a geografia da minha terra natal, a cultura absorvida, a forma de estar, sentir, a forma de viver do núcleo de pessoas com quem convivi e convivo, ter estudado o que estudei, ter ouvido o que ouvi, ter falado com quem falei, pequenos fragmentos diários que ao longo de anos foram montando o puzzle daquilo que sou (que ainda assim, é um projecto em evolução, sem fim à vista). Embora todas estas coisas sejam importantes, sentir orgulho em ser portuguesa sempre me pareceu algo absurdo. Eu não fiz nada, em nada contribuí para o meu país ser o que é (não contribuí na sua fundação, não contribuí em absolutamente nada que tenha sido gerador de progresso, evolução, nunca alcancei nenhum feito enquanto cidadã deste país que elevasse o nome do mesmo), eu simplesmente sou portuguesa.

E ser portuguesa não me parece justificação que chegue para ter orgulho, até porque qualquer país do mundo terá validade, terá pessoas capazes, uma história interessante, paisagens fascinantes, praias de água (quente), música impressionante, uma cultura vibrante, uma gastronomia deliciosa, uma força desportiva brilhante, governos empenhados, cientistas geniais, etc. E um país, qualquer país, é também um organismo em evolução, em mutação. E em alguns anos, um país pode deixar de o ser, fronteiras podem ser alteradas, terras anexadas, identidades supostamente sólidas, obliteradas pelo avançar da história, o avançar das vontades, um país que morre e outro que nasce.  

Dito isto, embora a minha racionalidade esvazie de sentido quaisquer expressões patrióticas e nacionalistas, a verdade é que dou por mim carregada de nervos com os jogos da seleção nacional, dou por mim a perder as estribeiras com gritos histéricos anunciadores de um golo «nosso», dou por mim capaz de contratar alguém para dar um enxerto de porrada num árbitro parcial ou distraído.

Mas o futebol não chega. Campeões nacionais de torneios internacionais, nem que seja de dardos, levam os meus fervorosos parabéns. Eurovisão? Não vi, mas torço na mesma. Uma música mais pindérica do que a «nossa» ganhou, abano a cabeça em reprovação. Aqueles parolos não percebem nada de música, só votam nos amiguinhos vizinhos, não se interessam pela arte, mas por politiquices e interesses vários.

Fado - a mais límpida expressão do que é ser-se português - não aprecio por aí além. Mas metam-me à frente a Mariza a cantar «gentes da minha terra» e raios parta se não começo a chorar. Ou a Dulce Pontes a cantar «Amor a Portugal» - é um arrepio generalizado, pele de galinha, uma sensação emocional avassaladora.

E se for viajar para qualquer lado, uma semana fora basta para qualquer pequeno resquício de cultura portuguesa me fazer emocionar. E se o tempo fora for muito, sou menina para chorar copiosamente mesmo ao som do Tony Carreira, pôr-me a ver o mais entediante filme do Manoel de Oliveira ou a babar-me perante um prato de rojões das tripas, que não gosto.

O sentido de identidade, de pertença a um lugar, talvez seja necessário, talvez funcione como força agregadora, uma espécie de religião que nos une, que encontra fatores de união, mesmo que a massa a unir seja de 2 milhões ou de 200 milhões de pessoas. Ainda assim, acho necessário que não vejamos a nossa identidade como força castradora, força capaz de nos cegar, de nos galvanizar e levar-nos a subir os degraus do complexo de superioridade.

Afinal de contas, nem sempre jogamos bem, há comida boa em muitas outras partes do mundo, a água das nossas praias geralmente é fria como gelo, a nossa música tem bons e maus executantes, o mesmo se passa noutros registos artísticos, os nossos governos... e os nossos navegadores, há que séculos que já se foram.

Que o nosso patriotismo seja uma religião do bem, uma religião da inclusão, da observação e compreensão dos outros, uma religião de introspecção e compreensão de nós próprios, das nossas fraquezas, das falhas das nossas escolhas enquanto povo, porque apesar do Fado, do pastel de bacalhau e do Ronaldo, não seremos assim tão diferentes de um espanhol, de uma croata, de um canadiano ou de uma dinamarquesa.

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