Bestas e Bestiais, Cidadãos e Relaxados
Bruno
Imagem: Bruno Nunes dos Santos
Ora a verdade não conduz à riqueza e o povo não concede embaixadas, nem lugares, nem pensões.
Jean-Jacques Rousseau, in “Contrato Social”
Por estes dias, ao ler a biografia de Natália Correia (da autoria de Filipa Martins e editada pela Contraponto), dou por mim, mais uma vez, a compreender que desde os tempos do Estado Novo (pelo menos) até aos dias de hoje, a grande maioria dos atores da nossa sociedade portuguesa continua a ser a mesma. Muitos que, até já não estando entre nós, deixaram descendência que pela posição, rede de influências ou pelo apelido vai perpetuando uma certo status quo.
E pensando em status quo, dou por mim também a ver sublinhado, uma prática corrente e que, com as redes sociais e a nova ascensão da televisão, vem a deixar de ser uma metástase, mas um verdadeiro núcleo cancerígeno e de tal modo maligno que coloca em causa essa mesma sociedade.
Justifico com alguns exemplos que deveriam saltar aos olhos de todos e nomeadamente na nossa incapacidade em reconhecer quem trabalha bem, quem promove a mudança para melhor e quem deixa marca positiva em contraste com a exaltação de indivíduos que deixam empresas e outras organizações na lama, sem esquecer as próprias entidades públicas.
Indivíduos que saem pela porta das traseiras (não raras vezes, literalmente) são imediatamente elevados à categoria de especialistas e donos da verdade no espaço televisivo, na imprensa e até nas redes sociais (um bom networking também aqui tem o seu efeito, uma boa agência de comunicação e a troca de favores também). Num país onde a falta de mérito e a incompetência proliferam em muitos setores, é fácil encontrar quem queira agradar e defender estes indivíduos, pois será uma questão de tempo até estarem na ribalta – por vezes, até antes de abandonarem o palco da catástrofe que eles próprios criaram. E se, ao contrário de Roma, em Portugal não se recompensam os melhores generais, por seu turno tendo a recompensar-se muito bem os que mais tarde ou mais cedo farão cair o império.
Recordo um episódio de alguém que havia sido dispensado de um banco, embora se movesse muito bem no lobby dos recursos humanos (com presença sempre assídua em tudo o que era evento) queixar-se de que os amigos não lhe estavam a conseguir um emprego de “sonho” e que era uma injustiça ter criado tantos contactos e ninguém lhe oferecer aquele emprego – “como é possível!”. O resultado não se fez esperar e o tal cargo apareceu. Mas mostra o ridículo a que já se chegou. Em momento algum foi mostrado o mérito e procurar um emprego por sua conta e risco estava fora de questão.
Independentemente de terem sido cometidos crimes, de se terem lesado empresas e colaboradores, independentemente de terem sido derretidos milhões de euros de dinheiro dos contribuintes, são estes indivíduos que continuam a dizer-nos como são as coisas, como nos deveremos comportar e posicionar e a ter um peso demasiado grande no modo como somos geridos, governados e atacados nos impostos que diariamente pagamos. Deixo um aparte, mencionado que discordo quando nos afirmamos como país pobre onde trabalhamos praticamente sete meses para impostos mas não perguntamos porquê e batemos todos os recordes em termos de aquisição de produtos de luxo.
Atualmente, sentados à mesa de um café, numa qualquer Ágora ou até entre família, damos connosco a sugerir o fim (profissional e em alguns casos até da vida) de determinado indivíduo e no dia seguinte, porque a verdade muda ao ritmo daquilo que nos é impingido, a exaltá-lo e a premiá-lo sem se saber exatamente porquê - entregamo-nos ao desplante de chegar a atacar veementemente a própria Justiça ou quem, numa entidade pública, no espaço público ou numa organização empresarial, encetou o processo de, vamos chamar-lhe, “arrumar a casa”.
Não quero acreditar que somos um povo de burros, ou de dependentes e afogados em luxo, também não quero acreditar que somos um povo de corruptos como muitos à minha volta constantemente me procuram demonstrar (e não raras vezes com sucesso, tenho de reconhecer), quero acima de tudo acreditar que, como Vergílio Ferreira dizia no seu “Rápida a Sombra”, “é fácil a voz da grandeza, quando a pequenez está calada”.
Quiçá a solução possa estar na educação dos mais jovens para a cidadania, no reconhecimento de que existem mais ídolos de que realidades, e acima de tudo, de nos vermos como cidadãos que teremos de nos preocupar mais com o funcionamento das nossas organizações, com um engagement que vá para além da preocupação com o salário e benefícios associados, reconhecendo porque ali estamos.
Nas organizações empresariais, todos ficariam contentes, já na questão mais pública, talvez não, mas também “não queremos conseguir um Estado, uma Igreja ou um Exército. Queremos Homens”, citando as palavras de Malraux. Fácil não é, até porque não existe nada mais complexo do que fazer com que as pessoas pensem naquilo que devem fazer. Talvez isso só possa acontecer com mais empowerment, e também com uma Democracia mais transparente e claro, com colaboradores e com cidadãos que queiram adicionar algo mais ao seu trabalho e ao seu país, em detrimento de uma cultura de mão estendida e paternalista.
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Para ler: "A Hora dos Lobos" de Harald Jähner, é talvez uma surpresa para muitos que ainda olham a sociedade alemã de uma forma inquietante. É uma oportunidade de ver como uma nação destruída e humilhada se ergueu, quis viver e se construiu logo após a queda de Berlim.
Para Ouvir: caindo na antiguidade, mas tenho sempre a sensação que a música de qualidade parou ainda antes de eu ter nascido, sugiro uma passagem por Itália e pelos Ricchi e Poveri e uma passagem por "Come Vorrei". Perdoem, mas quando se está no berço a ouvir "Sárà Perché ti Amo" não há como fugir, até porque este hit ainda faz mexer em Itália. E tenho de confessar... Já dancei, cantei e devorei bastante Negro Amaro ou Primitivo a sul ao som desta música com o Adriático como pano de fundo.
Para ver: se estiverem pelo Porto, uma passagem pelo Carlos Alberto para ver "Ricardo III" não será tempo perdido, vão por mim. Em Lisboa uma ida ao Nimas para ver "Folhas Caídas" de Aki Kaurismäki também é tempo bem empregue.