Caldeirada Com Todos... “GC”
sardinhaSemlata
Recolhidos na sucessão repetida dos dias (e, agora, mais propensos a reflexões que de outro modo talvez não tivessem lugar), é talvez tempo de voltarmos à velhíssima discussão sobre a necessária (re)significação do “ter” e do “ser”.
Se, para muitos, os bens materiais, a posse ou a propriedade aparecem como diametralmente opostos ao que se é - como se o “ter” fosse apenas centrado na aparência e o “ser” fosse uma experiência somente vivida de dentro e por dentro -, para tantos outros a primeira premissa permite a segunda. Mas se ter mais possibilidades, do ponto de vista financeiro ou material, permite, sem qualquer sombra de dúvida, acesso a um conjunto alargado de experiências e inúmeras vantagens, não é menos verdade que a forma como se vive poderá definir muito melhor o que se faz com o que se tem.
Na famosa Fábula de Esopo “O Avarento”, um homem que tinha um lingote de ouro havia enterrado este bem precioso num local aparentemente seguro e todas as noites verificava se ainda ali se encontrava. Até que um ladrão, suspeitando que pudesse estar naquele local algo valioso, seguiu o nosso avarento e substituiu o lingote por uma pedra. Apesar do desespero ao descobrir, a verdade é que o homem não fazia com o pedaço de ouro mais do que faria com uma pedra e a sua obsessão poderia assim encontrar perfeitamente outro objecto. Nos dias de hoje, também nós somos um pouco como o protagonista desta fábula: retirada a utilidade de certos bens, como um carro ou uma casa, inquietamo-nos com a pretensa importância do último modelo automóvel ou a hipotética necessidade de mais assoalhadas numa casa já de si atolada de objectos que acabamos por nunca utilizar, cedendo, assim, a uma comparação que de social tem muito pouco.
À luz das comparações que todos, de uma forma ou de outra, acabamos por fazer, o consolo sentido quando observamos o pouco que outros seres humanos possam ter - e a nossa natural capacidade para sentir compaixão pelo outro -, é transformado em revolta, frustração ou indignação num outro cenário. Perante aqueles que, tendo milhões, passeiam as suas embarcações pelas águas de Portofino ou Santorini enquanto nós apenas podemos dar-nos ao luxo de uma ida de ferry de Setúbal a Tróia, sentimos a ameaça àquilo que consideramos a justa ou equilibrada distribuição de recursos. O que não sabemos é que, num ou noutro cenários, a nossa tendência para o juízo imediato advém de um conjunto muito mais enraizado de crenças ligadas às emoções morais, e que é natural perdermos o jogo quando não conhecemos as regras do nosso próprio comportamento.
É aí que a aparente verdade das coisas nem sempre é assim tão linear: nem todas as pessoas ricas são extraordinariamente felizes, nem todas as pessoas pobres são miseravelmente infelizes. Como, no polo oposto, ser rico não é sentença de morte para que alguém se sinta infeliz e sozinho no meio dos seus lingotes de ouro, nem ser pobre se traduzirá automaticamente em grinaldas de flores na cabeça e passeios descalços pelas ruas de terra batida a apreciar os pequenos prazeres da vida. A complexidade da nossa realidade individual, e a consequente adaptação tornada muitas vezes resiliência, faz-nos navegar entre diversos estados.
E se “nem tudo o que parece é, nem tudo o que é parece”, porque não ser, por dentro, alguém de espírito renovado e verdadeiro, apreciando e desejando o que já se tem e devolver ao outro um sorriso de genuíno encantamento pela vida?
GC