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sardinhaSemlata

Um espaço de pensamento livre.

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11.07.20

Caldeirada Com Todos... “/i.”


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As pessoas que praticam actos desumanos merecem defesa?

 

 

“A educação sem grandes exigências de comportamento social e intelectual, leva-os a formar uma personalidade mesquinha, às vezes ressentida e admiradora de extremos…”

Agustina Bessa-Luís, Antes do Degelo

 

“(...) ao longo da sua vida um advogado tem sempre um caso que o afeta a nível pessoal.”

Harper Lee, Mataram a Cotovia

 

 

À luz da Constituição da República Portuguesa todos temos de ter protecção jurídica patenteada no Artigo 20.º, número 2: “Todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade.”

 

Volta e meia, sempre que somos confrontados com a personificação da miséria humana capaz de praticar crimes hediondos a descendentes ou ascendentes sangue do seu sangue, incontrolavelmente surge a interrogação: qual é o advogado que consegue defender este género de deriva humana, chamado pessoa?

 

[Podemos não admitir, inclusive nem falar com outras pessoas, mas esta interrogação em algum momento da nossa vida passou pelo nosso pensamento;  Porque conhecíamos de alguma forma (familiar de alguém próximo ou de vista)  as pessoas cujas as vidas foram ceifadas sem dó e nem piedade, por um lado. Por outro, ficamos revoltadas, sensibilizadas e impotentes com  as vítimas de histórias com finais trágicos.]

 

A nossa sociedade é organizada por um amplo e variado conjunto de normas, de entre as quais enalteço as normas morais e as jurídicas. A linha ténue que separa a moral e o direito não impede, porém uma identificação entre código moral e código jurídico. Na realidade as acções como o roubo, o homicídio, a violação, violência doméstica, etc., transgridem ao mesmo tempo as normas jurídicas e as normas morais. A coexistência em comunidade obriga ao surgimento  de normas éticas e jurídicas que alicercem a nossa vida social, sabendo de antemão que são tanto mais complicadas quanto maior for o grau de complexidade social. Faz sentido lembrar que os juristas romanos diziam que onde existe uma sociedade existe Direito.

 

Há crimes e crimes. (In)voluntariamente recorremos em surdina à súplica para que o advogado apresente a escusa para que não aceite defender um alegado homicida. Quando nos apercebemos que já tem proteção jurídica a nossa primeira reacção é a de crucificar o advogado: como pode defender alguém que factualmente praticou atrocidades humanas? No entanto, não temos a mesma reacção acalorada de rejeição e de dedo em riste para com o médico que conseguiu salvar o alegado homicida da morte, por exemplo. Ou somos mais contidas na raiva que empregamos com os advogados (de excelência) de corruptos que conseguem para os seus clientes invariavelmente condenações leves ou mesmo absolvições.

 

[A prisão efectiva do Isaltino Morais é uma excepção à regra.]

 

Sabendo que quem julga é o juiz. Quem tem de apresentar as provas irrefutáveis para acusar o arguido é o Ministério Público, a acusação tem ser capaz de provar que o arguido é culpado do crime. Por sua vez, cabe ao advogado defender o seu cliente das suspeitas/provas que fundamentam a acusação, e não defender o crime em si. Crime confessado ou não assumido, para o advogado não tem importância, a base da defesa incide no cliente, isto é, em evitar a pena máxima de prisão em que se insere o crime ou inclusive conseguir o tão desejado princípio do  “in dubio pro reo”, isto é, em caso de dúvida decidir a favor do arguido.

 

[Lembremo-nos do mediático caso do homicídio do triatleta Luís Grilo, do Lima Duarte com caso da herança da Rosalina.]

 

Quando está em causa crimes de sangue (em especial com crianças entre as vítimas) nasce em nós uma desmesurada ânsia de nos apropriar da função do juiz e julgar atribuindo a pena máxima prevista na nossa moldura penal, que achamos sempre pouco, sem tolerarmos que o autor do crime tenha direito a defesa.

As razões por vezes são simples: o cumprimento das leis não é inevitavelmente sinónimo de justiça dado que as leis jurídicas - elaboradas pelo homem - podem ser injustas;  bem como, podem ser executadas de forma desumana e abstracta, ao não confrontar a lei com o conjunto de princípios e de exigências morais que expressam o respeito pela dignidade humana, pelas legítimas aspirações e direitos das pessoas.

Atribuímos culpa aos juízes pelas sentenças judiciais injustas, esquecendo que os advogados de defesa fazem um trabalho exímio de interpretação da lei, adaptando-a às circunstâncias, procurando sempre um vazio ou uma escapatória na lei para beneficiar o seu cliente, através do persuasivo raciocínio fundamentado em argumentos falaciosos, sustentado principalmente num dos elementos que caracteriza a falácia: o erro oculto. Isto é, o advogado de defesa, que quer ganhar sempre, habilmente socorre-se e concentra-se num elemento desordenado do raciocínio para  conduzir a uma conclusão falsa, a partir de uma verdade. Esse elemento pode ser a ambiguidade de conceitos, o acidental passar a ser o essencial, tornar o relativo como absoluto, etc. A chave do sucesso está muitas vezes no detalhe para suscitar a dúvida: é a diferença de o cliente ser absolvido ou mesmo ter uma pena mínima. Os bons advogados (pertencentes a grandes escritórios de advocacia, poderosos no  lobby) fabricam autênticos milagres. O principal objectivo não é provar que o cliente é inocente, mas antes conseguir uma sentença judicial favorável e de acordo com os interesses do próprio cliente.

É, ainda, pertinente relevar a seguinte observação:  os advogados (oficiosos ou não) têm muita coragem em aceitar esta missão de  defender “pessoas” acusadas de cometer crimes de sangue violentos e que suscitam opiniões extremadas na sociedade civil.

Haja alguém que aceite. Que não se importe de ser alvo de julgamentos públicos preconceituosos: se defende esse tipo de pessoa é alguém que é atroz,  portador de um carácter duvidoso. Eu não teria coragem. Não era pelo medo da conotação gratuita. Era por não  conseguir dormir de consciência tranquila. Temos de ter presente que não é em meia dúzia de dias que alguém se torna num psicopata/sociopata, seguindo a mesma linha de pensamento um criminoso perigoso e violento não é um produto instantâneo. A  impunidade não pode ser regra, se assim não for, não  conseguirmos conservar a existência de paz social.

O advogado sabe quase sempre se o seu cliente cometeu o crime ou não. Eu faria uma defesa tendenciosa do meu cliente, ajudando a acusação através da não contra-argumentação dos factos que taxativamente permitiriam que se fizesse justiça num Estado de direito … e estaria sempre à espera que: «(...) – A minha leitura de cabeceira continua a ser Crime e Castigo. (...) a execução dum crime pode ser magistral, mas que a reconstituição dos factos fica completamente alterada desde que se tente recordar. “Depende de várias impressões mórbidas”, diz Dostoievski. Deviam  ler mais Dostoievski, é o que eu acho.»*

 

Ainda não li o livro Crime e Castigo. Se calhar irei gostar!

 

Isabel

 

 

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*Agustina Bessa-Luís, Antes do Degelo

 

/i.

 

 

 

 

 

 

2 comentários

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    /i. 11.07.2020

    Olá, Filipe.
    Eu é que tenho a agradecer por me receber neste espaço "fora da caixa". Muito obrigada.
    A desilusão que relatou acontece muito. E talvez por termos visto muitas séries americanas em que achamos que na barra do tribunal podemos ter aquela encenação e uma justiça glamorosa.
    E não é nada disto. É muita táctica e jogar com a morosidade da justiça. Julga-se primeiro em público depois quando sai a sentença já não faz sentido porque passou muitos anos.
    Beijinhos e grata por me receber no Sardinha Em Lata.
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