Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

sardinhaSemlata

Um espaço de pensamento livre.

sardinhaSemlata

Um espaço de pensamento livre.

20.06.20

Caldeirada Com Todos... “Nuno Vaz De Moura”


sardinhaSemlata

 

 

 

69207F10-249C-4F86-A7AD-AA572324F63C.jpeg

 

 

"Quem puder compreender, compreenda - a homossexualidade e o Novo Testamento"

 

 

A ortodoxia cometeu, ela mesma, o erro de admitir a razão à esfera religiosa, 

ao tentar comprovar por meio de raciocínios os artigos da fé. 

Thomas Mann in Doutor Fausto

 

 

 

 

Ao se abordar um tema tão sensível quanto o da homossexualidade no Novo Testamento, vários obstáculos se nos colocam logo à partida. Em primeiro lugar temos a questão de saber exactamente de que falamos quando falamos de homossexualidade. Como veremos adiante, este termo é bastante recente e não existia, quer enquanto palavra, quer enquanto conceito no tempo em que os Evangelhos foram escritos. Para além de que as passagens referentes ao que hoje entendemos por homossexualidade se são bastante escassas no exemplo masculino, são-o quase invisíveis no tipo feminino – dito lesbianismo.

Temos ainda que a bibliografia disponível sobre o assunto assume quase sempre uma posição política. Assim, deparamo-nos quer com autores que desejam encontrar nos Evangelhos (ou mesmo no Antigo Testamento) justificações, incentivos ou até mesmo elogios à homossexualidade; como, por outro lado, temos aqueles que edificam filípicas que vão desde a pequena admoestação até à identificação da homossexualidade como motivo e causa de tudo o que de mal acontece no Mundo.

Não é razão desta exposição ser contra ou a favor da homossexualidade; sequer pretende demonstrar se a bíblia aprova ou condena este «pecado» - se é que, de facto, se constituí enquanto pecado. O meu objectivo aqui é tentar verificar, na procura das origens etimológicas de certos termos, o que se compreendia por homossexualidade e quais as atitudes perante esta práctica, no período que, grosso modo, vai desde o séc. I a.C. ao séc. III d.C. – época da crise das religiões orientais e constituição do paleocristianismo.

De seguida irei elaborar uma aproximação pela fenomenologia, a fim de compreender o que se alterou do Antigo para o Novo Testamento no que diz respeito a este tema. As atitudes dos povos circunvizinhos serão tidas em consideração – assim como as suas produções culturais – para que se possa igualmente compreender o meio onde estas novas ideias se formaram.

 

Existem várias passagens na Bíblia comummente mencionadas como referentes à homossexualidade. No Antigo Testamento temos Deuteronómio 23:17-18,Levítico 18:22 e 20:13 e Génesis 19; no Novo Testamento, atribuem-se as passagens de Coríntios 6:9, 1 Timóteo 1:10 e Romanos 1:26-27. Antes de passarmos à exegese  destes excertos temos que analisar o background cultural onde estas ideias se formaram. Os evangelistas pertenceram a uma cultura que resultou de dois fenómenos culturais: o do Mundo Greco-Romano e o do Judaísmo (Helénico e Palestino).

O Mundo Greco-Romano, considerado no período que vai desde o séc. V a.C. e o séc. III d.C., e dentro da classe que produziu o corpus cultural e literário desta sociedade, praticou uma forma muito específica de homossexualidade. Durante este período de quase oito séculos as suas prácticas e atitudes sexuais pouco se alteraram pois foram o resultado de uma lenta formação social.

Contudo, como nos diz Foucault, «[...] a noção de homossexualidade é muito pouco adequada para recobrir uma experiência, formas de valorização e um sistema de acção tão diferentes do nosso. Os gregos não opunham como duas escolhas exclusivas, como dois tipos de comportamento radicalmente diferentes, o amor pelo seu próprio sexo e pelo outro.» Não se trata, de igual forma, de uma bissexualidade na medida em que não reconhecem duas espécies diferentes de desejo: «Pode-se falar de “bissexualidade” pensando na livre escolha que se concediam entre os dois sexos, mas esta possibilidade não era para eles referida a uma estrutura dupla, ambivalente e “bissexual” do desejo.» Os “amores masculinos” eram pensados dentro de quadros mentais muito restritos -  a pederastia – que implica entre parceiros uma diferença de idades, e, em relação com esta, uma certa distinção de estatuto. Em quase todos os exemplos uma relação pederástica era um relacionamento entre um homem adulto ou jovem adulto - erastes – e um adolescente ou efebo – eromenos. Um parceiro, sempre o mais velho, assumia um papel activo, enquanto o outro, mais novo, o papel de passivo. A isto se deve, um isomorfismo entre a relação sexual e a relação social: « Por tal é necessário entender que a relação sexual – sempre pensada a partir do acto-modelo da penetração e de uma polaridade que opõe actividade e passividade – é percebida como sendo do mesmo tipo e que a relação entre o superior e o inferior, aquele que domina e aquele que é dominado [...]»

Sobretudo na Grécia, a pederastia era o modelo dominante. Existem, contudo, muitas referências a amores masculinos que não obedecem a este esquema. Não se sabe se seriam ou não mal vistos socialmente, porém «O excesso e a passividade são, para um homem, as duas formas principais de imoralidade na práctica dos aphrodisia A sociedade greco-romana era patriarcal e fortemente masculinizada. Na vida pública a segregação sexual era uma realidade e a mulher não detinha nenhum papel de relevo. De igual modo, o sistema educacional existia apenas para o polo masculino. Então, se a vida pública e cultural destes séculos – mesmo tendo em conta as excepções – era fortemente masculina e masculinizada, era esperado que o parceiro intelectual e afectivo de um elemento masculino fosse outro elemento masculino, não havendo nenhuma condenação moral ao acto.

O segundo fenómeno cultural que fortemente influenciou as posições tomadas pelos paleo-cristãos foi o judaísmo bíblico e pós-bíblico, quer na sua forma helénica como palestina. Das três passagens do Novo Testamento que mencionam mais explicitamente a Homossexualidade, duas são da autoria de Paulo que, em ambos os casos, parece depender da tradição de influência judaica. Quanto ao autor de 1 Timóteo, não se pode precisar se seria judeu ou não. Para compreendermos o que os levou a escrever estas passagens é necessário entender o judaísmo contemporâneo do paleo-cristinanismo, o que incluí a Palestina Rabínica e a Diáspora Helénica.

Segundo Scroggs, do diverso material que constitui o corpus da produção cultural do Judaísmo Palestino, em parte severamente legal e lógico, em parte imaginativo e fantasioso, pode retirar-se as seguintes conclusões:

1. A bíblia hebraica provê as bases para a maioria das discussões. É a matéria-prima – tanto em relação ao conteúdo como à linguagem – fora da qual os judeus da Palestina produziram as suas próprias tradições em relação à homossexualidade. Assim, a linguagem da Bíblia, a maneira de expressar o conteúdo, guia e controla a linguagem dos Rabis. Os termos usados são sempre “varão com varão”, nunca adulto com jovem, mesmo quando se discute diferenças de idades. O Lev. 20:13 terá produzido o termo semi-técnico que os rabis usaram para designar a homossexualidade masculina;
2. A distinção entre parceiro activo e passivo é o assunto que mais se evidencia; não têm, contudo, uma percepção mais apurada das relações entre adultos que os gregos ou os romanos;
3. A cultura judaica, na sua forma oficial, era inteiramente contra os actos sexuais entre homens;
4. As discussões são formuladas como se as relações homossexuais pudessem acontecer dentro da comunidade judaica; no entanto, são os gentios os mais acusados. O modo como essas relações homossexuais tomaram forma não é possível de se conhecer através dos textos;
5. Toda a discussão é inteiramente dirigida ao acto sexual e à sua culpabilidade. Não há menção à possibilidade de qualquer tipo de relação. De facto, pode pressupor-se inclusive que as relações homossexuais tinham como único objectivo a gratificação sexual, como se as possibilidades de uma relação afectiva fossem irrelevantes, pouco importantes, ou não-existentes.

O judaísmo helénico pertencia ao milieu mais próximo do da cultura neotestamentária. Paulo de Tarso é o resultado de uma mistura de culturas judaicas helénica e palestina. Mas mesmo muito antes de Paulo, contudo, o processo de aculturação entre judaísmo e helenismo já tinha sido iniciado com a diáspora. Os principais pontos de discussão do judaísmo helénico – e ainda segundo Scroggs -  quanto ao tema são:

 

1. Quantos às prácticas: a homossexualidade é discutida enquanto um vício masculino e descrita como pederastia, quer explicita quer implicitamente. A pederastia é apontada como existindo apenas entre gentios;
2. Quanto às atitudes: o julgamento é definitivamente negativo - ahomossexualidade é errada. São apontadas três razões para tal:
a. É contra a Natureza;
b. Nega a procriação como objectivo último e divino da relação sexual. Esta ideia é apresentada apenas por Philo de Alexandria, mas este fá-lo de um forma muito clara e vincada;
c. Enquanto pecado entre pecados é particularizado por ser visto como estando, sobretudo, ligado aos pagãos e, por extensão, relacionado com a idolatria. Por um motivo não explicado, acreditavam que a idolatria conduzia a todos os tipos de “perversões” sexuais;
3. Quanto à linguagem, podemos dizer que o Septuaginto produziu traduções fiéis das leis do Levítico, produzindo expressões verbais que podem ter sido a origem do raro termo arsenokoites.

 

Quer o judaísmo helénico, quer o palestino apresentam-se como sendo contra as relações carnais entre homens. Ambos atacam-nas apontando-as como um vício dos gentios e fazem-lo apoiando-se numa constituição comum, ou seja, a Bíblia. Mas estes dois tipos de judaísmos variam nos argumentos. O palestino não teve aparentemente necessidade de apresentar argumentos que demonstrassem o acto como errado: o facto de a Bíblia  legislar-se contra era causa suficiente. O judaísmo helénico, porém, produz alguns escassos argumentos, apropriando-se do conceito da cultura sua contemporânea de que o sexo entre varões era contra-natura.

Para a Igreja que produziu os evangelhos, as relações entre homens não eram um tópico de discussão; não existe uma única observação sobre este tema em qualquer dos escritos. Sodoma é por vezes mencionada, mas nunca em relação à homossexualidade. Em Mateus 10:15(e Lucas 10:12), Sodoma simboliza as atitudes em relação à hospitalidade. Em Matias 11:23-24, é usado como parábola para falar do arrependimento. Em Lucas 17:29, a destruição de Sodoma simboliza a forma repentina como o escatão ocorrerá.

O Livro dos Actos não menciona e a Apocalipse de João parece não o fazer de igual modo. Em Apocalipse 11:8, Sodoma é um dos nomes dado a Jerusalém como termo de opróbio; duas outras palavras, ambas numa lista de vícios – Apo. 21;8 e 22:15 – foram por vezes identificadas como designando os homossexuais. Os termos são tão gerais, contudo, que é impossível saber se referem às prácticas ou não. Quanto à primeira passagem, a expressão que poderia querer condenar a homossexualidade («depravados», na versão portuguesa, «fornicatórios», na versão brasileira), refere-se, na verdade, aos fornicadores de um modo geral, ou seja, aos que se dedicam ao sexo. Quanto ao décimo quinto verso do capítulo 22, traz uma condenação a um tipo de acto sexual muito específico, referindo-se aos «cães», ou seja, aos kedeshim. Os kedeshim eram prostitutos cultuais que operavam nos templos, sendo os mais conhecidos os devotos a Ishtar. Então, o que se condenava aqui era sobretudo a prostituição e a idolatria, mais do que a homossexualidade per se.

Só nas Escrituras Epistolares o assunto aparece três vezes, explicitamente mencionado, como se verá adiante. Existem ainda outras duas passagens estreitamente ligadas ao tema e que, segundo alguns académicos, se referem a um julgamento às prácticas homossexuais: Judas 6-13 e 2 Pedro 2:4-18. Os autores destes escritos – 2 Pedro é largamente tido como dependente de Judas – estão a atacar os cristãos que eles acreditam serem os culpados de condutas não-éticas assim como de heresia teológica.  A falta parece ser de índole sexual, mas a linguagem é tão abstracta que parecer impossível construir qualquer elação. O que permite a referência à homossexualidade é a menção a Sodoma e Gomorra; mas em 2 Pedro ao se falar, no verso 14, em luxúria adúltera parece se estar a atribuir ao ataque uma direcção heterossexual. O que é notável, contudo é verificar que, qualquer que tenha sido a verdadeira natureza dessa má conduta, ambos os autores a  relacionam o ágape das comunidades cristãs, como se as pessoas a quem o texto se refere tivessem tornado essas refeições rituais religiosas em orgias licenciosas. Se a passagem em Judas acusa, de facto, esses cristãos de luxúria homossexual então os ágapes, nesta perspetiva, tornaram-se em encontros onde o interesse pederástico se tornou manifesto.

A primeira passagem na literatura cristã a mencionar a homossexualidade é 1 Coríntios 6:9-10. Scroggs defende que quem criou esta lista não seleccionou cuidadosamente cada item para se enquadrar no contexto com que lidam, visto as listas de vícios serem muito comuns na literatura judaica helénica. O que Paulo faz nesta passagem é utilizar uma forma literária estereotipada, que pode ou não refletir o seu sentido de prioridades, quer no geral quer em relação à igreja coríntia. Observando a passagem no seu contexto apercebemo-nos que existem, na verdade, três catálogos nesta secção, que se estendem de 1 Cor. 5 a 1 Cor.6. Esta secção maior é construída muito cuidadosamente. A intenção de Paulo é atacar a Igreja por certas prácticas que ele ouviu lá tomarem lugar. São elas:

1. Um homem a viver com a ex-mulher do seu próprio pai - 1 Cor.5:1-5;
2. Membros eclesiásticos que participam em tribunais civis indo contra eles mesmos, quando, de facto, e segundo Paulo, deveriam constituir os seus próprios tribunais eclesiásticos - 1 Cor.6:1-8;
3. Membros das igrejas que frequentam prostitutas - 1 Cor.6:12-20.

Assim sendo, a homossexualidade não é tópico já que os pecados de índole sexual são heterossexuais. Paulo está antes preocupado com a pureza da comunidade. As listas de pecados servem aqui para evidenciar o contraste entre a antiga impureza e a desejada pureza presente; e, a um tempo, servir de aviso às consequências de uma vida de pecado, de permissividade.

As três listas (ou catálogos) crescem em extensão ao longo do texto Ao que parece, Paulo procura aqui, por um lado, um clímax retórico e, por outro, não se preocupa com os itens separadamente, ou seja, não desejou enfatizar nenhum deles [Vide Mapa I]. Se compararmos esta lista com a de Gálatas 5:19-21, bastante mais extensa, vemos que apenas dois vícios são comuns a 1 Cor. 6:9-10; a saber: idolatria e alcoolémia. É interessante notar que tanto malakoi (“efeminados”) como arsenokoitai (“sodomitas”) estão ausentes. Scroggs conclui, então, que dificilmente se pode estabelecer uma conexão entre qualquer uma das listas e o contexto da passagem. Mais, Paulo não atribuí nenhum peso particular a essas palavras, nem está especificamente preocupado em acusar os antigos pagãos da sua igreja de homossexualidade abrangida nesses termos; caso contrário teriam surgido na lista apresentada em Gálatas.

Há, então, que atentar ao significado dos termos que deram origem às expressões “efeminado” e “sodomita” neste contexto. Malakos μαλακός - é uma expressão grega que significa literalmente “mole” e, por extensão, “efeminado”; porém nunca se constituiu como um termo técnico (como eromenos, por exemplo) para designar uma relação ou pessoa pederasta. Temos que ter em conta, ainda assim, que por associação a palavra surge em vários textos como apontando, com sentido pejorativo, para os prostitutos masculinos que adoptavam modos e estilos femininos. Usado em associação com outro termo mais específico ou no contexto da pederastia, pode designar um pederasta, mas sempre de forma negativa. Ou seja, em contextos puramente sexuais não é um termo neutro. Malakos, então, não designa a pederastia no geral, mas antes, um determinado tipo, ligado à prostituição.

Arsenokoites  - αρσενοκοιτέω - é um termo menos ambíguo que o anterior e surge da junção das palavras arsen (varão) com koite (cama), incidindo na questão do acto sexual. Contudo, este termo é estranho e parece ter surgido nesta passagem pela primeira vez. Aparentemente não existe memória escrita anterior a Paulo do uso deste termo.

John Boswell, faz uma profunda análise etimológica à lexicografia de Paulo e adianta que o termo significa antes “homem deitando-se”, o que significa a relação sexual de um homem, ou seja, o acto da fornicação. Na literatura grega anterior ao Novo Testamento não existe a utilização deste termo. Assim, é possível que seja uma tradução directa do hebraico, da expressão mishkav zakur  - “deitar-se com um homem”. Crê-se, portanto, que o termo originário dos círculos judáico-helénicos é uma tentativa de traduzir o termo rabínico quasi-legal para uma expressão grega compreensível, mas afastando-se da habitual terminologia grega. Em suma, se admitirmos que malakos é o jovem prostituto efeminado, então arsenokoités será o “cliente” mais velho que o paga.

A maior referência às relações sexuais entre homens no Novo Testamento – Romanos 1:26-27 – encontra-se numa secção especialmente orquestrada da carta aos Romanos começando no verso décimo oitavo e terminando no trigésimo segundo que, segundo Scroggs, obedece a um fim teológico maior, não tendo preocupações éticas ou de admoestação como objectivo. O seu verdadeiro objectivo é antes a descrição da queda da humanidade numa falsa realidade onde agora vivem. Os versos que atacam a homossexualidade parecem ser dependentes de uma propaganda judaico-helénica contra os Gentios. Se a frase «varão com  varão» se relaciona com as leis no Levítico, é possível que Paulo estivesse a pensar em pederastia, tal como Philo de Alexandria, já que este era o tipo corrente no Mundo Greco-Romano.

Por seu turno, para Boswell, a condenação deve ser vista dentro do contexto dos propósitos mais amplos de Paulo, que serão: a queda da verdadeira obediência de Deus e as suas consequências. O objectivo da passagem não é estigmatizar nenhum tipo de comportamento sexual, mas antes a condenação dos gentios, pela sua infidelidade no geral. E, o que é mais importante, as pessoas que Paulo condena são manifestamente não-homossexuais; o que derroga são os actos homossexuais cometidos por pessoas heterossexuais. Paulo está assim a estigmatizar apenas as pessoas que foram para além da sua própria natureza para cometer actos sexuais . Este argumento, contudo, está muito preso à distinção entre «invertidos», ou seja,  aqueles que são naturalmente homossexuais, e os «pervertidos», aqueles que se dedicam à homossexualidade como uma outra forma de sexualidade.

A última passagem no Novo Testamento conhecida como sendo referente, de certa forma, à homossexualidade encontra-se na primeira epístola de Paulo a Timóteo (1 Tim. 1:9-10). Curiosamente a versão portuguesa faz uma estranha tradução do termo arsenokoités, desligando-o da sua conotação homossexual. Apesar de o ter traduzido por «sodomitas» em 1 Coríntios 6:9-10, aqui tradu-lo por «infames». É preciso recorrer à versão brasileira para que a palavra «sodomita» surja. Para que se possa fazer a análise deste trecho dentro da óptica que até agora se adoptou, é necessário socorrermo-nos desta última versão.

Ao que parece, o que Paulo quer combater nesta específica passagem são os ensinamentos cristãos que ele considera heréticos. Aqueles que estão a promover essa heresia advogam ser «mestres da lei»; o que o leva a elaborar a sua própria anotação do lugar da lei – apesar de não ser claro se se refere à lei Mosaica ou à civil. A lista apresentada nos versos nono e décimo, semelhantes às que vimos anteriormente, obedecem a um efeito de ritmo e retórica. Indo à sua origem etimológica, Robin Scroggs demonstra que estas palavras têm aqui um significado muito restrito reforçado pela sua particular disposição no rol de catorze vícios. Vejamos:

 

Sabendo isto, que a lei não é feita para o justo, mas para os [1] injustos e obstinados, para os [2] ímpios e pecadores, para os profanos e irreligiosos, para os [3]parricidas e matricidas, para os homicidas,

Para os [4] devassos, para os sodomitas, para os roubadores de homens, para os [5]  mentirosos, para os perjuros, e para os contrários à sã doutrina.

                      1 Tim. 1:9-10

 

Como podemos ver, os vícios agrupam-se em cinco categorias que, grosso modo, se poderiam classificar como: a da injustiça, a da idolatria, a do assassínio, a da imoralidade sexual, e a da falsidade. Esta esquematização é importante para perceber porque surge aqui a expressão «roubadores de homens» e o que se pretende atacar quando se fala em «sodomitas». De facto, as três palavras da quarta categoria parecem faltar em rigor quanto à sua tradução: Devassos é originalmente pornoi, significando «prostitutos adultos» ou «escravos de bordel»; Sodomitas é arsenokoitai que, como já vimos, significa «o que se deita com homens» ou «homem que se deita»; e, por fim, andrapodistai , traduzido por roubadores de homens mas que, na verdade, se refere ao «mercador de escravos». Assim sendo, a condenação aqui recai não na homossexualidade, nem sequer na pederastia em geral, mas sim numa forma específica de pederastia que consistia na escravatura de rapazes ou crianças para propósitos sexuais e o uso desses rapazes por adultos.

Horner acrescenta outros dados relativos a esta passagem. O autor afirma que esta lista poderá ter tido origem em três fontes distintas:

1. Nas listas de excessos contrários à razão dos escritores estóicos;
2. Na tradição judaica;
3. No «jogo das virtudes e dos vícios»: jogo popular que consistia em se escrever numa placa dividida ao meio as virtudes e os vícios de um determinado sujeito.

Assim, Paulo terá sido influenciado tanto pelo seu background judeu como por aquilo que ele sabia serem prácticas dos gregos – aquilo a que os romanos chamavam de “vícios”; e a escolha desses vícios em particular terá sido feita tendo em especial atenção a situação de Corínto, onde ainda subsistiam os cultos de Magna Mater e de Afrodite Urania. Os sacerdotes da Magna Mater, os galli, eram eunucos efeminados, que se vestiam com trajes de mulher e adoptavam modos femininos. Já nos cultos de Afrodite Urania, para além das famosas heterai, havia prostitutos cultuais masculinos, os kedeshim. Assim, é fácil pensar que Paulo teria visto vários destes travestis na rua, tendo o ofendido, de igual modo, pela questão da idolatria.

Urge agora fazer um pequeno retrocesso a fim de se compreender uma ideia firmemente enraizada na mentalidade judaica e dos primeiros cristãos: a associação da homossexualidade à idolatria. Para isso temos que atentar ao Antigo Testamento e, em particular, ao código levítico. Em Lev. 18:22, temos:

Não coabitarás sexualmente com um varão, é uma abominação.

E em Lev. 20:13:

Se um homem coabitar sexualmente com um varão cometeram ambos um acto abominável; serão punidos com a morte e merecerão o suplício.

A palavra «abominação» usada aqui, foi a tradução da palavra hebraica to’ebah, que significa algo intrinsecamente mau, um pecado religioso, uma idolatria. É particularmente associada com a idolatria e com os canaanitas. Essa ligação está patente mesmo dentro das passagens que se referem aos actos homossexuais, porque os actos homossexuais religiosos faziam parte da adoração canaanita de Ishtar, como já vimos anteriormente. A consistência interna é óbvia em 1 Reis 14:24. Neste sentido, para os judeus, a homossexualidade masculina passa a ser o paradigma de to’ebah, a abominação que cada judeu deve refrear sob pena de morte.

Se bem que o Concílio de Jerusalém (49 d.C.) estabeleceu o princípio que defende que os ensinamentos do Antigo Testamento não são aplicáveis aos cristãos, tal não aconteceu com alguns deles. O levítico nunca foi inteiramente ignorado. Por entre um sem fim de leis de conduta diária tão arbitrárias como incompreensíveis, existe uma pequena lista de seis que regem o comportamento sexual. Essa lista, mais coerente, destaca-se do resto do Antigo Testamento (em particular Lev.20:10-20) tendo se tornado parte da lei secular judaica e transcritas para a lei romana quando os cristãos tomaram o poder. Assim não será errado pensar que esse fosse também o código de conduta dos primeiros cristãos, incluindo os apóstolos, como Paulo.

É impossível saber quais teriam sido as opiniões de Jesus no que se refere à homossexualidade. Com segurança apenas se pode dizer que ele subordinou toda a sexualidade à espiritualidade; se participou em alguma forma da sexualidade humana não pode ser demonstrado. Existem contudo algumas passagens e histórias normalmente associadas ao tema. É o caso do estranho ritual secreto envolvendo jovens masculinos que passavam a noite com Jesus, apenas vestidos com um pano de algodão (sem nada por baixo) para que se desse o «conhecimento de Deus». Este ritual é relatado por Clemente de Alexandria e está escrito num recentemente descoberto fragmento do Evangelho de Marcos. Existe ainda muita discussão académica e teológica à volta deste facto, porém, seria inapropriado assumir que este documento tem  valor de prova sobre as atitudes de Jesus sem ter em conta vários outros factores – os Carpocracianos podem ter possuído um evangelho relatando supostos comportamentos homossexuais de Jesus, mas isso diz-nos mais dos Carpocracianos do que de Jesus. Do mesmo modo, o salmo secreto de Clemente é suspeitosamente gnóstico no tom, insinuando que é necessário um conhecimento secreto para se entrar no círculo das igrejas cristãs, mas a cristandade nunca foi uma igreja esotérica.

Em Mateus 8:5-13 e Lucas 7:1-10 temos o episódio da cura do pagem-escravo de um centurião por Jesus. O afecto que o centurião parece mostrar pelo seu escravo vai para além do que era habitual. Tom Horner aponta que, se bem que Lucas use a palavra doúlos (escravo), Mateus escolhe pais (rapaz), palavra recorrentemente usada para designar os eromenos. Mateus, estando mais perto da língua aramaica, terá recorrido à expressão que lhe pareceu ser mais similar ao que ouviu; já Lucas, sendo grego, terá preferido um termo mais neutro. De qualquer forma, Jesus não faz nenhuma menção a essa relação o que significa que ou o elemento homossexual não estava presente ou não tinha especial interesse.

Uma outra passagem tem levado a discussão mais longe; trata-se de uma referência aos eunucos em Mateus 19:10-12 que passo a citar:

Os discípulos disseram-Lhe: «Se é essa situação do homem perante a mulher não é conveniente casar-se»! Respondeu-lhes: «Nem todos compreendem esta linguagem, mas apenas aqueles a quem isso é dado. Há eunucos que nasceram assim do seio materno, há os que se tornaram eunucos pela interferência dos homens, e há aqueles que se fizeram eunucos a si mesmos por amor do reino dos céus. Quem puder compreender, compreenda.»

 

Esta passagem faz parte de uma secção dedicada ao tema da indissolubilidade do casamento. É uma passagem de difícil interpretação como se vê na advertência que Jesus faz no final. A Igreja Católica interpreta esta passagem como sendo uma indicação de Jesus de um «estado superior ao matrimónio». Segundo Horner, a passagem parece mostrar que para Jesus, ao contrário da comunidade judaica, um eunuco não eram uma persona non grata. Jesus deveria ter conhecimento dos eunucos Galli do culto de Cibele, assim como de outros de índole não religiosa, e que se dedicavam a actos homossexuais. Em parte alguma da hermética sentença se consegue destrinçar uma condenação, o que nos leva a poder concluir que Jesus não se opunha a este estado. Mas, seria a frase uma alegoria? Falaria Jesus dos eunucos no sentido de «castidade»?

 

Como se sabe, os ensinamentos de Jesus pouco tiveram a ver com o desenvolvimento da doutrina e teologia cristã; assim, a ideia de condenação e intolerância em relação ao que classificam como sodomia, herdadas do Antigo Testamento, prevaleceram tendo sido continuada, sobretudo, na voz de Paulo. Contudo, há que ter em conta que Jesus, em parte alguma dos evangelhos, condena (ou aprova) as uniões entre varões. De qualquer forma, parece que a Igreja do Novo Testamento não estava especialmente preocupada com a homossexualidade enquanto tema, pelo menos a julgar pela evidência dos textos. As três passagens – todas em Paulo -  que parecem se referir ao tema são precedentes de tradições performativas, quer gregas, quer judaicas.

Há que ter em conta, de igual modo, que para os evangelistas a homossexualidade não era entendida como o é hoje; aliás, o conceito nem sequer existia. Daí que seja bem provável que, segundo defende Robin Scroggs, eles estivessem a pensar em pederastia, quando se referem à homossexualidade. Contudo, como mostrou a História, o cristianismo manteve sempre uma posição fortemente contrária às realções entre homens a que chamou de sodomia. Com Clemente de Alexandria (c.150-215 d.C.), autor de duvidosas capacidades intelectuais, dá-se, em Paidagogos, a síntese do que iria se constituir durante séculos como os argumentos contrários. Todas as fontes – se bem que a maior parte delas treslidas ou mal citadas – estão lá: Levítico, Platão, o Mito de Sodoma, os argumentos de Philo, o anátema de S. Paulo, e as alegorias animais da Epístola de Barnabás.

Um século depois, a 16 de Dezembro de 342, poucos anos depois da morte de Constantino, os seus filhos editam uma lei que será a primeira parte da implementação de um regime anti-sodomia da Igreja cristã. Esta foi a primeira lei do Mundo Mediterrâneo ( com excepção da Palestina) a condenar os homossexuais à pena capital. Curiosamente, os bordéis masculinos continuaram a funcionar – e os Imperadores bizantinos a receber os seus impostos – até o Édito de Teodósio, em 390 d.C. que dá o último passo condenando os homossexuais à fogueira, dando início a um comportamento que se manterá por toda a Idade Média e até muito tarde na história da Civilização Ocidental.

 

 

1 Coríntios 5:10

1 Coríntios 5:11

1 Coríntios 6:9-10

Imorais

Imoral

Imorais

Avarentos

Avarento

Idólatras

Ladrões

Idólatra

Adúlteros

Idólatras

Maldizente

Efeminados (Malakos)

 

Dado à embriaguez

Sodomitas (Arsenokoitai)

 

Ladrão

Ladrões

 

 

Avarentos

 

 

Maldizentes

 

 

Os que se dão à embriaguez

 

 

Salteadores

 

Mapa I - Listas de vícios da Primeira Epístola aos Coríntios. A azul vemos os termos que são acrescentados à lista anterior. Fonte: Robin Scroggs, The New Testament and Homosexuality, p.103.

 

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

BOSWELL, John, Christianity, Social Tolerance and

Homosexuality, Chicago: The University of Chicago

Press,1981;

ESPÍRITO SANTO, Moisés, Origens do Cristianismo Português,

Lisboa: Inst. de Soc. e Etnol. das Religiões da

UNL, 1993;

FOULCAULT, Michel, História da Sexualidade II – O Uso dos

Prazeres, Lisboa: Relógio D’Àgua Editores, 1994;

HORNER, Tom, Jonathan loved David – Homosexuality in

Biblical Times, Philadelphia: The Westminster

Press, 1978;

PUTERBAUGH, Geoff, The Crucifixion of Hyacinth – Jews,

Christians and Homosexuals from Classical Greece

to Late Antiquity, New York: Authors Choice

Press, 2000;

SCROGGS, Robin, The New Testament and Homosexuality,

Philadelphia: Fortress Press, 1984.

 

 

Textos Bíblicos:

 

Bíblia Sagrada,Lisboa: Difusora Bíblica (Missionários Capuchinhos), 1988;

 

Novo Testamento de Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, Brasil: Gideões Internacionais, 1984.

 

 

Nuno Vaz De Moura

 

 

4 comentários

Comentar post