Caldeirada Com Todos... “Rita Palma Nascimento”
sardinhaSemlata
Da trilogia: Pandemia, Grandes Superfícies e Comércio Tradicional
Desde o aparecimento dos primeiros grandes centros comerciais, que concentram múltiplas ofertas no que ao retalho e serviços diz respeito, que o comércio tradicional tem sido fortemente esmagado. Os motivos são bem conhecidos e prendem-se, sobretudo, com a evolução dos tempos e com as alterações do estilo de vida das sociedades, que ditaram mudanças nos hábitos e consumos.
Se por um lado fomos alimentando a falta de tempo e fomentando a nossa indisponibilidade para socializar, por outro, foi-nos dada a oportunidade de ter, no mesmo espaço comercial e sempre à mão, uma panóplia de produtos (desde os bens essências, ao vestuário, passando pela tecnologia, pela decoração, calçado, beleza, saúde…) a preços competitivos e sem necessidade de interação e proximidade com o vendedor. Afastámo-nos da familiaridade e da afeição pelas gentes do bairro e concentrámo-nos na frieza dos grandes centros de consumo.
Porém, ironicamente, a actual pandemia veio exigir uma forçada inflexão do caminho, obrigando-nos a uma privação radical do contacto directo e humano, dos afectos, das conversas de circunstância à esquina da rua, da partilha familiar, da reunião de colegas e amigos, dos aglomerados de seres humanos quer em espaços abertos, como fechados. Isolou-nos e despoletou em nós a necessidade de reflectir e corrigir o possível. Voltámos a sentir saudade do trato carinhosos da dona Amélia da mercearia, do telefonema da dona Joana da papelaria dando conta de que o livro chegou, ou do sorriso fácil do senhor José do talho da rua de trás, quando nos pergunta quantos são os bifinhos tenrinhos do costume. O medo de frequentar grandes superfícies é agora algum e o pensamento aproximou-nos dos mais pequenos, numa angustia partilhada pelo confronto directo com as dificuldades (ainda maiores) que o comércio tradicional continua (e continuará a atravessar). Porque, sabemos e sempre soubemos, que pesados os pratos na balança, o volume de facturação, o número de transações, o peso dos negócios imobiliários e o bolo de impostos e taxas associadas às grandes superfícies, teria muito mais interesse para os cofres do Estado do que as receitas globais provenientes do pequeno comércio.
Assim foi e assim é. Fruto das medidas adoptadas para o combate à pandemia (desde março até ao presente), muitos pequenos empresários e comerciantes viram-se na obrigação de suspender as suas actividades, enquanto outros acabaram mesmo por fechar portas, na incapacidade de fazer face às despesas inerentes ao negócio, agravadas pela necessidade urgente de investimento preventivo e adaptação de espaços e negócios à nova realidade. (Note-se que, na sua maioria, falamos de pessoas de idade pouco interessante para o mercado de trabalho nacional, pelo que a procura de novo emprego será também ela dolorosa).
Contrariamente, as grandes superfícies permaneceram abertas sem grandes restrições de horários, para consumo de bens alimentares, tecnologia e saúde – numa primeira fase, reabrindo integralmente numa segunda, fruto da forte pressão que o sector retalhista exerceu junto do poder central. Por aproveitamento da situação, e não só por “culpa” da pandemia, uma vez que as grandes marcas/empresas detêm estruturas capazes de assegurar situações de quebra abrupta, milhares de funcionários foram dispensados, desde quadros técnicos e superiores, aos lojistas, passando pelo pessoal dos stocks e logística, transporte, contabilidade, departamento de RH, etc. Porém, na sua maioria, as receitas continuaram a crescer, aquando da reabertura de portas, embora não com o mesmo dinamismo. E aqui, importa referir que a pandemia provocou uma forte disrupção nas rotas de comércio internacional, obrigando as empresas a repensar estratégias e apostar de forma mais concentrada na produção nacional e nas redes de abastecimento local, a fim de evitar a interrupção do fornecimento de produtos.
Citando Leon C. Megginson, numa frase recorrentemente atribuída a Darwin, “Não é o mais forte que sobrevive, nem o mais inteligente, mas o que melhor se adapta às mudanças.”
Todavia, se por um lado foi aberta uma porta aos produtores nacionais, por outro, nem todos estão aptos a transpô-la. E a esses, vai valendo o comércio tradicional, onde os produtos são vendidos a um preço ligeiramente superior. Isto acontece porque as grandes empresas, ao comprarem grandes quantidades, negociam valores, permitindo vender mais barato, mas diminuindo consideravelmente a margem de lucro do produtor.
Desta forma, ao comprarmos no comércio local, não só estamos a ajudar quem heroicamente sempre esteve disponível para nós, oferecendo com afecto e simpatia o que de melhor e “mais nosso” podemos encontrar, como estamos igualmente a contribuir para que os pequenos e médios produtores se mantenham.
Ainda se lembra de quão aconchegante é dar dois dedos de conversa com a senhora do pronto a vestir? E poder oferecer as flores mais frescas compradas na simpática florista na esquina? Ter o pão guardado, para que o possa recolher ao fim do dia? E o requeijão, as popias caseiras, a fruta e os legumes de que mais gosta, acompanhados de um sorriso e gratidão? E o atendimento caloroso naquele restaurante onde se arranja sempre mais uma mesa para si? A lista seria longa, mas creio que amanhã todos iremos olhar para as nossas pessoas e bairros de forma diferente, permitindo-nos voltar a eles e ser parte deles.
Compre no comércio local. Ajude quem nunca se esquecerá de si.
Rita Palma Nascimento