De volta à normalidade
Sarin
Um mês inteiro a escrever tarde e más horas sobre as eleições presidenciais, e agora que estas passaram e o mês se finda nem sei bem por onde começar a análise séria e ponderada que os seus resultados convocam. Quero dizer, a análise tenho-a feita, não está é escrita. Por isso, coloco o tema de lado. Por agora. Por hoje.
Prefiro abrir-me convosco. Ou explicar-me. Só um pouco. Não se habituem.
Em Junho afastei-me por questões de saúde. O sistema imunitário implorava descanso, muito mais descanso do que eu alguma vez lhe consegui dar, e os olhos ameaçavam embaciar a distância. Assumi um duro tratamento: entre outras artes, tive de restringir o tempo dedicado a olhar os ecrãs, qualquer ecrã, tentando diminuir os estímulos sensoriais e aumentar as horas de sono - parece que o sistema imunitário precisa de umas 6 horas e daqui levava 5 nos raros dias de muita vontade de dormir.
Ganhei umas horitas ao sono, mas demorou meses - e bastou uma noite de pouco sono para voltar quase ao mesmo. Quase, a média de sono diário aumentou perto de uma hora, os olhos aguentam mais luminosidade e o sistema imunológico só me falhou meia dúzia de vezes - se por mérito próprio ou do confinamento é desconfiança que não aprofundarei, prefiro ver a árvore do que a floresta. De qualquer maneira, a árvore é minha, a floresta fica longe e eu ganhei uma hora de sono, não baixei as dioptrias.
Nos primeiros meses cumpri escrupulosamente as regras. Depois, comecei a sofrer do síndrome da privação: ouvia vozes (eram afinal da rádio), as mãos tremiam-me (quando ouvia as notícias e não podia cruzar fontes), a boca secava-se-me (de tanto falar sozinha). À socapa, meti-me no Twitter. Doses pequenitas, que aquilo é toca-e-foge... mas deu para acalmar. Um olhar fugaz escapando-se pelo canto do olho e aterrando no ecrã do telemóvel - "aquilo é pequenito, certamente fará menos mal do que o do computador, não?" [sim, eu sei, mas com uma qualquer justificação a infracção torna-se moralmente menos dolorosa, e não estamos em tempo de grandes moralismos]
(interrompo para publicar. já volto) (desculpem, mas estava quase na hora do Triptofano!)
Enfim, por lá andei durante uns dias até que achei estar capaz de voltar aos blogues, embora contra os avisados conselhos de quem sabe mais destas coisas. Por um motivo simples: navegar implica ler e comentar e escrever e responder, o que não é lá muito compatível com o tal tratamento. Mas voltei ao pé-coxinho, como que a experimentar, e foi quando o sistema imunitário recomeçou a fazer nhanhanha - pouco se preocupou se eu tinha saudades de ler ou de escrever, não ligou peva ao meu esforço e não quis saber das minhas necessidades de comunicação. Não. Irritou-se, bateu-me e chegou mesmo a mandar-me para o hospital!
Aqui entre nós, posso especular que, sem ser Presidente da República, devo ser das pessoas confinadas sem covid que mais testes fez. Não que o quisesse, mas o protocolo mandava-me seguir para as Urgências Covid - da primeira vez ainda expliquei à atenciosa enfermeira da Linha 24 que 38ºC de febre não me é caso de alarme e o problema seria outro, mas não me ligou. No lugar dela também não me ligaria, saúde pública em pandemia não se pode condoer de idiossincrasias perante quadros clínicos parecidos com o da infecção em causa. Portanto, à segunda vez calei-me bem calada e arrostei bravamente com a zaragatoa nariz acima. À terceira sorri, à quarta deu para fazer piadas, na quinta não achei piada nenhuma porque estava cheia de dores. A sexta, foi mais na base da rapidinha: dêem-me lá os resultados negativos para eu poder voltar para casa dos meus pais a tempo do Natal, que lá sempre há a tal floresta que não vejo [antes que me apontem a "facilidade do Natal", chamo a atenção para o verbo "voltar", usado não por acaso. A terrinha tem sido refúgio de confinada]
Bem sei: talvez se não tivesse abusado o tratamento fosse mais eficaz. Mas, e a comunicação, onde ficava? E valeria a pena o benefício perante tamanho e tão prolongado esforço?
Confrontada com estas evidências, confrontei também quem me mandou cumprir abstinência. E o veredicto é: se não a podes adormecer, atura-a e habitua-te. Bom, habituada já eu estava, portanto voltarei à rotina. Com algumas regras adquiridas neste tempo, e que manterei: não blogar ao telemóvel. não blogar ao telemóvel. não blogar ao telemóvel. Se as conseguir cumprir todas, terá valido a pena.
Queridos Sardinhas e Sardinhas-leitores:
Tenho-vos deixado ficar mal. Mal vos leio, não comento nem respondo... Não garanto não o voltar a fazer, mas pelo menos, e doravante, se o fizer será apenas por um motivo, não por dois.
Sei que este postal é muito diferente dos meus habituais, mas mereciam-me uma explicação mais profunda do que as dadas até aqui. E, sinceramente, às 23h20 também não me ocorria muito mais para dizer, devedora que estava desta explicação.
Confesso-vos não ser fácil, a fluidez depois de um interregno. Tudo o que escrevo me sabe a pouco, a demasiado ligeiro face à profundidade e ao peso que os temas exigem. E são tantos, os temas que me assolam!
Não fogem. Aliás, mesmo que o postal estivesse curto, à hora que termino já é o amanhã da quarta-feira de ontem que me cabia em sorte aqui pelo sardinhaSemlata, e há uma quarta regra que assumi tentar cumprir - não ficar ao PC até depois da 1h00.
Fevereiro está à porta. Cá estarei com ele, uma semana depois deste dia em que se comemoram os 76 anos da libertação de Auschwitz pelo Exército Vermelho. Há que comemorar, para não esquecer. E para que não volte a acontecer.
Cuidem de vós, cuidemos de todos.
E fiquem bem. Fiquem muito bem e durmam melhor. Com The Pogues.
Sentem-se à fogueira
e contar-vos ei uma história
para vos mandar para a cama