“Deixem Mohammad Rasoulof Sair”
Bruno
Imagem: REUTERS/Stephane Mahe via kayhanlife.com
Decerto, eu posso equivocar-me sobre o que julgo do que vejo.
Vergílio Ferreira, in "O Existencialismo é um Humanismo"
Escrevo este texto não como uma forma de activismo, para chegar a tal ponto teria necessariamente de dispor de informação, sendo que à data desta publicação o Governo Iraniano ainda não se pronunciou. Sem embargo, não posso deixar de ficar estupefacto (embora situações destas não sejam algo de novo) com a condenação de Mohammad Rasoulouf a oito anos de prisão alegadamente por propaganda - nos seus filmes e não só - bem como acções contra o regime. Recupero também um slogan com muito pouco tempo: "Let Mohammand Rasoulof Go!". Muito conhecerão o realizador pelo filme "O Mal Não Existe" que é brilhante!
Tenho de confessar a minha paixão pelo cinema iraniano que consegue ultrapassar semelhante sentimento pelo trabalho de outros países, nomeadamente de França, Grécia, Turquia, alguns países árabes e até de uns tantos a leste. O meu coração divide-se quando entra o cinema italiano. É talvez essa paixão, em vésperas do lançamento do último filme do realizador em Cannes que me faz juntar ao estupor de muitos.
O cinema iraniano consegue despertar em mim e em tantos outros emoções que mais nenhum conseguiu até hoje. É de um realismo brutal (sobretudo para quem já esteve no país ou conhece a cultura) e capaz de despertar todos os sentidos numa oscilação entre coisas boas e coisas más que nunca deixam o espectador relaxar na cadeira do cinema um segundo que seja. Os actores são de um profissionalismo singular e todos os argumentos dignos de exaltação mesmo quando alguns dos realizadores optam pelo que chamamos "mais do mesmo".
Talvez exista uma dúvida que ainda possa não ter sido vislumbrada pelo Governo Iraniano (e não o escrevo com cinismo mas com coração aberto) que assenta na premissa de que os filmes de realizadores como Rasoulof são autênticos instrumentos de promoção do país e das suas gentes, mesmo que contendo críticas à forma como alguns aspectos do país possam ser geridos. Na verdade, por todo o Mundo, quantos filmes não são uma forma de protesto, nem que seja numa fala ou numa imagem? Odiaremos nós os Estados Unidos por filmes que exploram conspirações ou tocam nas fraquezas federais e até da própria presidência?
Os filmes iranianos são dos maiores embaixadores desse país tão único, são uma verdadeira amostra de uma realidade nem sempre perfeita, mas qual o país que se pode gabar disso? Mesmo que a intenção seja expor o regime, acaba por ter um efeito de atracção tal junto de quem o vê que a paixão por essa nação milenar ainda se torna mais exacerbada. É impossível não ficar apaixonado pelas personagens de "O Mal não Existe", desde o conformado e aparentemente tranquilo (aquela paragem prolongada no sinal vermelho...) funcionário prisional, até aos dois soldados que lidam com dilemas distintos mas que no final da linha até se assemelham, o que mudou foram as escolhas. No final destes filmes, por incrível que pareça, ao invés de ficarmos todos com uma grande vontade de condenar o regime, o que nos fica é um apetite imenso de conhecer ainda mais tamanha cultura.
... E agora permitam-me, mas "Os Irmãos de Leila" é uma obra monumental, e também com a crítica a alguns aspectos da cultura iraniana actual. Saeed Roustayi, um jovem realizador que juntou a uma história fenomenal actores geniais que tenho acompanhado como Payman Maadi (simplesmente adorável), Navid Mohammadzadeh (inigualável) ou Taranej Alidoosti (uma actriz como já poucas existem) entre tantos outros. A cena final é talvez das que mais me marcou até hoje e só actores iranianos conseguiriam executar uma cena daquelas e causar tal efeito. Navid Mohammadzadeh, Alireza no filme, tornou-se um ídolo para mim com aquele momento. Uma palavra também para Ramin Kousha e a banda sonora.
É um facto, nem todos os filmes poderão ser do agrado do regime, mas uma coisa temos de reconhecer, mesmo no meio da contestação, a forma como estes realizadores retratam e consideram a sua pátria é louvável e como poucos o fariam por esse mundo fora. Só esse aspecto deveria fazer de todos aqueles que nos fazem chegar tais filmes, verdadeiros homens de honra da Pérsia. Dos poucos que conheço mais próximos do regime, tenho muitas dúvidas que praticamente ninguém reconheça estes méritos, afinal para que serve a revolução se não for para tornar os homens melhores, como tão bem diria Malraux?
Junto-me a "Alireza" e perante alguma tristeza dançarei na esperança da libertação deste e de tantos outros embaixadores iranianos, reforçando mais uma vez de que mesmo com convicções ideológicas diferentes do regime, este último tem muito mais a ganhar com a sua liberdade do que com a sua prisão.
(Actualização 14/05/2024 - 11h:54m: Sabe-se entretanto que Rasoulof terá alegadamente fugido do Irão...)
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Para ver: "O Mal Não Existe", pelos motivos acima enunciados e se tiverem tempo para mais, do mesmo realizador, "A Man of Integrity".
Para assistir: O "Dona Maria Sunset" regressa mais uma vez à Póvoa de Lanhoso e desta feita será na interessante Quinta do Meira com uma vista fantástica para o Castelo - o tal onde um determinado indivíduo separatista encerrou a mãe. É garantido que não estanto em Lisboa, não faltarei.
Para ler: uma viragem para o teatro com "endgame", "Fin de Partie" ou se preferirem "Jogo do Fim" de Samuel Beckett. Bem actual, sobretudo pela forma como nos deve colocar a pensar nos tempos que vivemos e naqueles que queremos para o futuro. Porque é que coloquei Beckett no meio disto tudo? Não sei.
Para ouvir: um cheirinho de Ramin Kousha e da banda sonora dos "Irmãos de Leila". E lá me chegam à mente tantas cenas...
Para comer e beber: uma sugestão iraniana sob a mão do Chef Sépideh Radfar. O Khayyam em Lisboa, no Principe Real, é uma viagem pela cozinha persa e uma espécie de reencontro com um jantar num canto da grande Naqsh-e Jahan em Isfahan e que tantas recordações traz. Para beber, permitam-me a sugestão de um branco fantástico, o "Les Hauts de Smith 2019 Blanc" do "Château Smith Haut Lafitte". E até porque compensa na carteira, quem andar por Bordéus e passar pelo terroir de Pessac-Léognan é favor comprar porque vai perfeitamente com uma "Salada Joojeh" ou com um "Ghormeh Sabzi".