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sardinhaSemlata

Um espaço de pensamento livre.

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26.05.21

Desumanização


Sónia Pereira

 

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Twitter @CruzRojaEsp

 

Luna, uma voluntária da Cruz Vermelha, abraça um migrante senegalês acabado de sair do mar, em Ceuta. Um homem desesperado que recebe conforto de uma mulher. Um gesto simples, espontâneo, mas impactante.

Para algumas pessoas, aquelas imagens foram uma forma de restaurar a fé na humanidade, nestes tempos conturbados, uma exposição da nossa compaixão e capacidade de empatia pelo próximo. Para outros, aquelas imagens foram geradoras de ódio, desencadearam represálias várias contra a autora do abraço.   

Para mim, apesar de sentir o impacto de ver nos outros aquilo que acho elementar (a nossa capacidade, enquanto seres humanos, de interação e cooperação com os nossos semelhantes), sinto que aquelas imagens apenas servem para mostrar o que poderíamos ser, enquanto humanidade, mas não somos.

Não somos porque não temos tempo, não temos interesse, somos egoístas, não estamos naquela situação, não somos nós, não nos identificamos. Mas, acima de tudo, não somos porque a maioria de nós não tem qualquer poder para mudar o mundo, para explorar nos outros o que de melhor eles têm e não o inverso. A maioria de nós apenas assiste, discute, enfurece-se, entristece-se, sente-se impotente e consequentemente frustrado com o que se passa no mundo, mas sem qualquer tipo de poder para o conseguir mudar.

E apesar de Luna ter abraçado aquele homem, mais pessoas continuarão a morrer afogadas no mar numa tentativa de alcançar uma terra que lhes seja mais meiga, muitos mais, chegando de longe a um qualquer país ocidental, acabarão explorados como mão de obra barata, seres invisíveis, seres indesejáveis aos olhos dos vizinhos locais, muitos outros morrerão sob os braços fortes de uma conflito armado, dos dois lados da barricada desse conflito, outros ainda, não vivendo uma guerra bélica, vivem amordaçados pelos regimes dos próprios países e acabam raptados quando viajavam de avião dentro de espaço aéreo europeu, seguindo o guião quase inverosímil de um livro ou filme. Outros ainda veem a sua ignorância, falta de acesso a um sistema de ensino digno, explorados, através da manipulação, pelos próprios governos, igrejas, organizações, empresas e comunicação social.

E nós falamos destes assuntos, indignamo-nos, mas o nosso estrebuchar de nada vale. E perceber a nossa existência de cidadão comum e aquilo que lhe está inerente – uma completa e total insignificância no que à tomada de decisões diz respeito, uma completa impotência, uma voz sem amplitude ou sequer som – é o que de mais aterrador existe na idade adulta. É fazer de figurante neste filme da vida em que a única hipótese de chegar a ator principal é através de algum ato extremo negativo. Somos aqueles que passeiam em pano de fundo, que enchem o plano, mas sem direito a fala no guião.

Por vezes aparecem estes pequenos momentos, acendalhas de compaixão, apenas para nos fazerem acreditar no bem, no poder único de cada um de nós em fazer o bem, na nossa capacidade (em regressão) de sentir empatia, mas são apenas fogos-fátuos, lampejares de luz que logo desaparecem sem deixar rasto.

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