Em Agrigento com o حَمْزَة
Bruno
Imagens: Bruno Nunes dos Santos
Para se conversar não é preciso que o outro diga nada (...) uma conversa é um nada de estar só em voz alta.
Vergílio Ferreira, in "Signo Sinal"
Com a arraiada a fazer-se anunciar pelas vidraças do Charles de Gaulle, deixava-me descair na cadeira junto à porta de embarque para Palermo. A espera ainda era longa e queria estar totalmente reposto para aguentar a amizade (e a conversação à velocidade da luz) de uns grandes amigos que me esperavam já na ilha. Entrementes, ainda com os olhos entreabertos, dou comigo a apreciar uma figura desengonçada, com um fato amarrotado, uma boina (ocidental e não a chéchia) a condizer e com traços claramente árabes do Norte de África e a aproximar-se da cadeira onde eu estava. O intervalo aberto dos meus olhos terá sido a oportunidade que Hamza encontrou para iniciar a conversa após um tímido bonjour, monsieur.
Hamza, oriundo de uma vila perto de Sidi Bouzid, na Tunísia, não esperou um segundo para aproveitar a minha resposta e iniciar a conversa perguntando se eu era argelino e o que fazia por Paris. Endireitando-me na cadeira, e de soslaio reparando nas calças puídas verde azeitona, lá lancei o discurso habitual que guardo para o Médio-Oriente e onde acaba com um "sou português". Hamza, com um sorriso, lembrou-se imediatamente de falar em Córdoba e Sevilha, de Granada e de Barcelona. Deixei essa parte da conversa ficar por aí, afinal a Ibéria é uma nação, para quê complicar.
Com Hamza sempre a tomar a dianteira da conversa, pois ao ter retorno em francês e pontualmente em árabe ainda mais se embalou, fiquei a conhecer a sua história da Tunisia, dos seus quatro filhos e da esposa que o esperavam em Agrigento e de como a última era uma verdadeira especialista em Lablabi e outros pratos que acabam sempre numa tagine ou couscous. Agrigento, a terra de Pirandello, do Valle dei Templi, de Heraclea Minoa com uma praia fantástica onde ainda se respiram os ares deixados pelos gregos e claro da inesquecível Scala dei Turchi que me traz sempre à memória a "Malena" de Giuseppe Tornatore e uma das mais belas bandas sonoras de sempre com o cunho do mestre Morricone.
Falámos de Lampedusa, uma das minhas últimas paragens já fora da ilha, e de como já a crise migratória se anunciava. Como tantos outros, Hamza defendia sempre que o problema não estava nos migrantes, mas em muitas ONGs e nos próprios países de origem. Concordei, até porque como nos devemos afastar de médicos que nunca interrogam a causa da doença também nos devemos afastar daqueles que procuram a solução para este problema no continente europeu ou em paliativos.
E com tanta conversa e tanto debate, aquele humilde e desajeitado Hamza, acaba a convidar-me para jantar em Agrigento com a família. Faz questão de trocar contactos e agendar o dia, não há desculpas - depois de uma tarde ao sol em Heraclea, o jantar é em casa de Hamza. Reparo que lhe pesa já a idade, não consigo negar mais, mesmo desculpando-me que tenho alguns afazeres a norte da ilha antes da travessia em Porto Empedocle.
E a tarde ao sol em Heraclea foi mesmo de calor e o final do dia em Agrigento era o clima perfeito para cozinhar um bife no asfalto ou em cima de um muro. Cidade velha, que não é um hino à elegância mas que se transforma completamente quando calcorreamos as ruas estreitas e com declives de respeito, quando partilhamos a subida das escadas com as nonas e quando os aromas do mediterrâneo ali tão perto começam finalmente a vencer os odores dos escapes.
Encontramo-nos num parque de estacionamento com Hamza e chegamos à sua pequena e acolhedora casa. Uma casa decorada com muito mais influências europeias, se bem que o cheiro que vinha da cozinha não enganava - o borrego deveria estar no ponto. Somos convidados para uma bebida e apresentados à família. Uma família feliz, embora com uma certa saudade da terra-mãe no olhar. Falamos da Tunísia, dos pontos turísticos e da situação política, hà época ligeiramente mais calma. Falamos de Portugal, e também de Sevilha e Barcelona (claro...) sendo que o convite fica feito para uma visita a Lisboa. Chega o Lablabi e somos convidados para a mesa onde também se encontra uma Pasta alla Agrigentina. Uma gentileza por parte dos anfitriões que abraçaram também a cidade que os acolheu e como prevenção para o caso de não sermos adeptos da comida tunisina. A Tagine de Borrego e os Couscous não se fizeram esperar bem acompanhados de um Nero d'Avola trazido por nós. Sim, bebeu-se e comeu-se bastante.
A noite acabaria de uma forma peculiar, a falarmos de Pirandello e da dramaturgia deste, algo desconhecido para aquela família. Acabou a abordarmos as coisas boas e más da cidade, nomeadamente a máfia que em Agrigento tem uma forte presença de clãs associados ao crime organizado.
Voltámos ao nosso alojamento, dirigido por um indivíduo com mais de 40 anos, que à boa tradição siciliana andava a mandos da mamma que simpaticamente nos tratou como se fôssemos também parte da família. Antes de nos entregarmos ao sono, subimos ao terraço e ali ficámos a contemplar as ruínas iluminadas no Valle dei Templi e a ouvir os sinos da Cattedrale di San Gerlando que porventura saudavam diariamente toda aquela mistura de culturas que desde a civilização grega encontraram nesta ilha um porto de abrigo mas também grandes disputas. Creio que parte da família de Hamza ainda pensa que Córdoba e Mértola fazem parte do mesmo país, mas uma coisa é certa, nos diferentes corações não deixamos de ser amigos sem nação.
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Para ver: passaram 30 anos e serão poucos os que se recordam dos 800 000 mortos. Será interessante sentarem-se com os vossos filhos, como os meus pais à época se sentaram com alguém que ainda nem 10 anos tinha e assistir a Hotel Ruanda. Este é apenas um filme de 2004, mas ainda com menos de 10 anos, assisti às primeiras imagens que chegaram aos telejornais e não foi agradável. Uma outra sugestão: um documentário com dias da Deutsche Welle muito bem conseguido e convenhamos, bem actual em temas como a guerra entre irmãos, a hipocrisia das lideranças e instituições mundiais, o discurso de ódio e como tudo pode mudar de um dia para o outro.
Para ouvir: não poderia deixar de passar a banda sonora do filme Hotel Ruanda. "Million Voices" foi uma daquelas músicas que após ter visto o filme pela primeira vez, nunca mais me largou. Mas todo o album merece um final de dia dedicado a.
Para assistir: este Sábado, a Gulbenkian vai juntar a Arménia e a Turquia num concerto que promete e muito. Vardan Hovanissian & Emre Gültekin vão aproximar dois povos que nem sempre estão próximos através do Saz e do Duduk. Não irei perder.
Ainda para assistir: dia 12 de Abril arranca um dos eventos que aguardo ansiosamente todos os anos, a "Festa do Cinema Italiano". Obrigatório estar presente em algumas das iniciativas.
Para ler: ainda na senda do post da passada semana, o livro de Rashid Khalidi, "Palestina, Uma Biografia - Cem anos de guerra e resistência" dá-nos uma visão baseada em factos, com testemunhos na primeira pessoa e pontualmente de forma apaixonada (embora sem se deixar contagiar) de um conflito que teima em não cessar. Uma leitura que nos leva bem para lá daquilo que pontualmente abordamos e culpamos. Uma leitura obrigatória e para ler com espírito crítico.