França - Roma - Picasso
JB
Primeiro amor:
Nasceu em França e vivia em Portugal. Era loira e não devia ter mais de 1,70. Umas sobrancelhas pretas finas e a boca sempre com um baton encarnado subtil (se é que isso é possível). À excepção da cara a pele clara mal se via, só através dos sapatos de salto alto pretos que costumava usar, com umas calças de ganga justas e uma camisola de lã branca apertada. Encantava-me a sua voz doce e o seu sotaque. Derretia-me sempre que dizia o meu nome e me chamava ao quadro. Eu tinha 13 anos e ela era a minha professora de francês. Nunca me viu da mesma forma. Não estava destinado...
Primeira viagem de avião:
Roma, a convite de um primo. Lembro-me que gostei muito e lembro-me sobretudo de uma coisa:
Antes de escrever a minha memória do que se passou quero declarar solenemente que sou um céptico. Além disso sou ateu e sou cínico. Acredito que existe uma explicação racional para tudo, mesmo para aquilo que ainda não temos explicação. Ainda assim isto aconteceu-me; estou mesmo convencido disso:
No fim de uma noite carregada de copos, ia de regresso a casa pelas ruas de Roma. Devia ter uns 19 anos. Estava a passar muito perto do Vaticano e aproximava-me de uma ponte pedonal. Ainda era de noite mas as ruas estavam iluminadas e reparei que vinha um grupo de jovens mulheres na direção oposta da ponte. Não estava mais ninguém na rua, os sons ecoavam e à medida que nos íamos aproximando da ponte já quase conseguia ouvir o que diziam. Estávamos quase a cruzar os nossos caminhos, eu de um lado, elas do outro, não havia ninguém à vista e de repente as três dão um grito e afastam-se de um vulto que surge do nada, no meio da ponte mesmo à frente delas. Olho com mais atenção e vejo um homem novo de cabelo preto liso até as orelhas. Com gabardine preta a andar num passo apressado na mesma direção em que o trio de amigas aparentava ir. Indiferente ao facto da sua aparição súbita no meio de uma ponte que desafia as leis da física ter deixado em pânico três miúdas. Elas mudaram imediatamente de direção e foram as três a correr para trás. Eu senti o sangue a gelar e continuei no meu caminho a tentar perceber o que tinha acontecido. O vulto nem pareceu ter reparado que nós existíamos. Exibicionista ou demónio? Nunca saberei.
Primeiro cão:
Picasso, um Labrador retriever. Aqueles dos anúncios de papel higiénico lembram-se? Branco. Muito inteligente e leal. O primeiro de muitos melhores cães do mundo que pude conhecer. Muitas alegrias com aquele cão e apenas uma má memória; o dia em que aquele que era suposto ser o meu melhor amigo, me traiu:
Foi numa tarde de sol com o meu primo Gandajone. Os dois na nossa juventude, com um bronze glorioso em plena praia e o Picasso, um Labrador macho adulto, a tomar banho no mar da Foz do Arelho, enfrentando as ondas de frente enquanto dava espetáculo para os banhistas presentes. 'É uma questão de tempo' pensei eu, parecia-me óbvio. Afinal estava tudo a olhar para nós (enfim para o Picasso, mas nós estávamos muito perto dele). A praia estava cheia e as raparigas são muito competitivas como todos sabemos. 'É uma questão de tempo' repetia...
Depois do nosso aquecimento habitual descemos em direção ao mar com o Picasso, mais uma vez, estrategicamente passamos ao pé de um grupo de amigas a apanhar sol na areia:
-Ohhhhh tão giro! Como é que se chama? - "Êxito" pensei eu, contente enquanto me concentrava para a minha voz não mudar de tom durante a resposta (tinha uns 15 anos).
- Picasso - Digo num tom acolhedor mas ainda assim audível, enquanto segurava na trela do cão contraindo os músculos dos braços e ombros para parecerem maiores. Sorrio discretamente e penso: "A bola está do vosso lado meninas".
-A sério? E o cão? - Desatam-se a rir todas à gargalhada.
Afastámo-nos sem resposta e sem dignidade...
Menos o Picasso, o Picasso ficou amigo delas e só se juntou a nós mais tarde, traidor.
JB