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sardinhaSemlata

Um espaço de pensamento livre.

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15.01.24

Há Coisas Que Aqueles Que Comem De Faca E Garfo Não Sabem…


Filipe Vaz Correia

 

 

 

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Imagem de Bruno J. Santos

 


Há coisas que aqueles que comem de faca e garfo não sabem. Durante algum tempo, é melhor voltar a comer com as mãos.

Rudyard Kipling, in “Kim”

 

O nome Roya Heshmati dirá pouco a muitos, não obstante é a imagem de uma mulher que, à semelhança de milhões de outras, ostenta toda a beleza e coragem das mulheres persas.

 

Roya Heshmati, em pleno século XXI foi condenada a uma multa de 12.5000.000 rials e 74 chicotadas. Uma “atenuante” face aos 13 anos e 09 meses de prisão, 112.500.000 rials e 148 chicotadas de que inicialmente foi alvo.

 

Confesso que me custa escrever sobre o Irão, pois o contacto com diferentes lados, onde se inclui o regime, leva-me a pensar muito bem e a refletir muito no sentido de encontrar, como sempre defendo na minha vida profissional e pessoal, uma via diplomática e de abertura. Para lá disso, o Irão e toda aquela região que se estende da Geórgia ao Líbano, da Arménia ao Afeganistão é uma das minhas paixões - e reconheço a dificuldade em encontrar consensos.

 

Não obstante, vejo em Roya e tantas outras como Mahsa Amini, mais do que uma beldade ancestral imensa mas também uma força singular capaz de arrastar multidões numa luta contínua por pequenos fragmentos de liberdade. São mulheres como Roya que conseguem mobilizar mulheres e homens e onde o intelectualizado e partidário feminismo não tem lugar. A luta é em conjunto, nem que seja pelo simples facto de não usar um lenço na cabeça ou simplesmente poderem abraçar alguém que não do mesmo sexo.

 

São mulheres como Roya que têm tudo a perder e não hesitam em dar esse passo. Sabem que, ao contrário das vozes femininas que pululam a Ocidente, a maioria em posição de conforto e sempre com as palavras sempre bem medidas e ponderadas, uma palavra no local errado pode implicar uma condenação feroz ou até a morte. Todavia, não é isso que as demove, não raras vezes enfrentando também a cobardia de muitos homens. Não as demove que em muitos locais a Ocidente, Portugal é um deles, os noticiários exaltem inúteis, limpem a imagem de criminosos e indivíduos cujo dano ao país não é mensurável ou que em duas horas (o que já por si é de loucos), se confundam notícias com um programa de viagens e não se lembrem que existe um mundo lá dentro e lá fora. Lutam sem procurar protagonismos, capas de revista e sabendo que muitas delas passaram pela história como um grão de areia do Maranjab.

 

Mulheres como Roya são mulheres de uma casta singular, que à semelhança do poeta Hafez, sabem que a felicidade está mesmo à frente dos seus olhos - e todos aqueles que já estiveram no Irão sabem-no. Sabem como em cada palavra se nota a força e sabedoria de uma civilização imensa (aliás, é igual para os homens), reconhecem a solidariedade que existe entre as mesmas, solidariedade essa que se exprime até no simples olhar aquando de um encontra na rua entre desconhecidas.

 

As mulheres como Roya, não são as activistas ou as caras das redes sociais que lutam pelos direitos das mulheres (muitas vezes como a Ocidente ainda nem sequer estivessem consagrados) mas que não hesitam em partilhar as férias em países onde as mulheres têm a vida bem mais complicada que no Irão (muitos destes países não permitem que as mulheres trabalhem, tenham carta de condução, mostrem sequer o rosto ou estejam em locais onde estão homens…). Entre as fotos destas viagens e dos resorts de luxo, lá se promovem os direitos das mulheres. As mulheres como Roya são mulheres simples que não pretendem ser heroínas ou celebridades, contudo, são mulheres que nos deverão orgulhar como seres humanos que somos e cuja fatalidade, ao contrário do que nos disse García Márquez, não nos deveria tornar invisíveis, bem pelo contrário.

 

Numa sociedade adormecida pela futilidade, são pessoas como Roya que me fazem acreditar que apesar de tanta apatia e conflito, o mundo ainda é um ótimo lugar para se viver.

 

 

Bruno J. Santos (Robinson Kanes)

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