Já não há paciência para naufrágios
Sarin
I Queixar-se do mundo contra si.
II Criar teorias da conspiração.
III Vitimizar-se de ataques ao indivíduo, à liberdade, ao pensamento.
IV Sair, esbracejando e acusando o mundo de traição.
V Reentrar sem vergonha nem contrição.
VI Escrever recado e apagar, como quem diz que não foi, que não sabe, talvez até que nem estava lá.
Quase parece um guião para uma birra do Trump ou uma diatribe do Ventura, não é? Mas não, não é. É um relato de uma ocorrência real com uma pessoa banal, e traduz a sua forma de estar. Comum a pessoas que, não sendo Trump nem Ventura, têm muito mais em comum com estes proto-ditadores do que aquilo que gostam de admitir. Publicamente, pelo menos.
Não pretendo interpretar-lhes a alma, apenas a postura. Porque a postura é comunicação e é a comunicação o que nos liga e afasta. Nestes dramas de mau teatro, talvez que se suponham primas donnas numa epopeia muito sua e nos desejem assistentes de camarim? Não sei. Sei que supõem o mundo do tamanho do seu horizonte e que, mesmo insistindo haver mais mundo, continuam a indistinguir a paisagem que avistam nas gáveas de onde se tentam fazer avistar. E com isso é fácil lidar - basta virar costas.
No entanto, continuam a comunicar. E fazem-no partilhando características discursivas, por vezes opiniões, com Trump e Ventura. Sem embargo, as falácias são-lhes recorrentes. Nuns, poucos, por mestria será, a manipulação servindo-lhes interesses definidos. Os outros, simplesmente, usam-nas. Inconscientes das mesmas, ignaros do seu significado, escapa-se-lhes aquela centelha que lhes permitiria bolinar sem naufrágio entre factos e interpretações, opiniões e desejos. Num naufrágio tudo se mistura, revolto na água que adentra - ou perdido borda fora... e assim lhes saem os argumentos, entre escolhos e queixumes. Assim lhes saem as opiniões suaves endurecidas ao sol de muitos assim naufrágios.
Terão estas gentes o condão de "dizer as verdades que todos pensam"? Não. Mas, porque tudo surge embrulhado, qualquer um que aviste a maré-discurso tenderá a vislumbrar algo que lhe pareça comum, familiar. E encontrará, estreitando-se a comunhão com o náufrago. Todos temos pena dos náufragos.
Quero dizer, é relativo.
Vivemos dias assim, lidamos gentes assim. O discurso político está minado de argumentos que o não são, a comunicação social perdeu-se no espectáculo-competição e nas redes todos somos vozes e ouvidos, os vestígios de naufrágio surgindo em cada vaga. Em voga entre alguns.
Não, não tenho mesmo paciência para naufrágios.
O pensamento é livre. Assim o raciocínio se liberte de amarras.
E se faça ao mar antes que sequem os rios.
Fiquem bem. Com Adriano.