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sardinhaSemlata

Um espaço de pensamento livre.

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29.04.20

Máscara social


Sarin

Máscara social. O nome que se convencionou dar a um equipamento que entrou recentemente nas nossas rotinas.

Quem se terá lembrado de tal nome? 

Percebo que seja para as distinguir das máscaras cirúrgicas, mas como se pode chamar social a um equipamento que é, em si mesmo, uma barreira à comunicação? Ou talvez seja eu que não consiga pensar em socializar sem expressão facial...  Como socializar sem sorrisos? Pensemos que mal surgiram as primeiras short text messages, as SMS (sigla para Short Messaging Sistem), surgiram também os primeiros emoticons, exactamente pela nossa necessidade de colocar expressão em textos que não o permitiam, por reduzidos.

Suponho que teremos de aprender a ler os sorrisos nos olhos, nas múltiplas entoações da voz. Como nestes dias reaprendemos a enviar abraços nas palavras, pois outros não. Será difícil, mas adaptar-nos-emos.

E, ainda assim, não gosto do nome. Preferiria máscara convivencial, mas é um palavrão. Ou máscara de rua, mas haveria logo quem dissesse que não são para usar apenas na rua... ainda descobrirão um nome mais adequado do que este, suponho.

Até porque máscara social recorda-me a persona de Jung, o papel que cada um de nós eventualmente interpreta perante a sociedade, a transformação que talvez assumamos perante os vários ambientes onde cada um interage. Talvez que com estas novas máscaras sociais se desnudem as personas, os sorrisos amarelos clareados porque inúteis, os sorrisos de circunstância adiados porque desnecessários - apenas o olhar carregado de impressões ou de vazio como denuncia do ego? Talvez estas máscaras sociais permitam que caiam essas outras máscaras sociais, e por aí já me reconciliarei com o nome -embora desconfie que não foi esse o objectivo do baptismo.

Enfim, seja como for passaremos a usar máscaras sociais.

As minhas são de chita de Alcobaça, um belo tecido de algodão estampado. Bonitas e leves, para que quem me olhe se sinta bem. Também tenho máscaras cirúrgicas descartáveis, há anos que as uso em alguns contextos profissionais. Mas usarei as minhas máscaras de chita de Alcobaça.

Poderão pensar que o faço por vaidade... mas não. A máscara cirúrgica causa inquietação em quem olha, por muito que nos sejam quotidianas continuam a ser máscaras cirúrgicas e o inconsciente tresanda-nos a hospital. Nesta época das Tecnologias da Informação deparamo-nos com barreiras comunicacionais que supúnhamos ultrapassadas, e esta rejeição inconsciente, este desconforto pressentido é um deles. Por isso combatê-lo-ei como posso: com máscaras coloridas.

 

Por falar em desconforto pressentido... como ficará neste momento aquela história de se andar de cara coberta em bancos, ourivesarias e outros lugares de alta segurança?

E como agirão os antagonistas do niqab? Talvez estas máscaras sociais lhes sirvam também para cobrir a vergonha? Porque belgas, franceses, holandeses, dinamarqueses e outros proibicionistas do cobrir de cara para, especificamente, proibirem o niqab (e a burka), terão agora uma tarefa engraçada pela frente. Engraçada para mim, claro, que assisto de fora. E pergunto-me como se posicionará o Tribunal Europeu perante uma recusa de uso de máscara.

Adivinho, dentro das minhas rudimentares artes lógico-divinatórias, que alegarão ser esta máscara usada por questões de segurança e saúde pública, e que por isso não fará mal andar de cara coberta. E evitarão dizer que o niqab é usado por questões religiosas, portanto uma questão completamente diferente - evitarão dizê-lo, mas pensá-lo-ão para com os seus botões, fechos e máscaras sociais. E acrescentarão que a saúde pública se sobrepõe à segurança pública - a tal que invocaram para proibir andar de cara coberta. Parecia mesmo uma ideia genial, não parecia? Porque, na verdade, a questão agora resume-se ao mesmo: estamos a tapar a cara parcialmente, dificultando a identificação. As motivações é que variam, o que prova que, para muitos, tudo é afinal aceitável e apenas os nossos desconfortos pessoais definem o quê, quando e como. Ou, como diria um vizinho muito velho e muito sábio, Menina, todos os burros comem palha, é preciso é saber dar-lha...

 

Em modo de despedida, convido-vos a ler, ou a reler, este artigo da repórter Céu Neves, republicado no Diário de Notícias em 2016. Iremos ter reacções semelhantes uns com os outros, ou cair-nos-á finalmente a máscara social e veremos a nossa essência?

 

Por mim, usarei uma máscara de protecção do outro feita de chita, um tecido tradicional aqui de Alcobaça - cujos padrões e técnica, oriundos de um país da Ásia, foram importados pelos navegadores do séc. XV.

O Mundo não pára de girar e acabamos sempre por nos descobrir mais próximos do que supomos.

máscara social em chita

 

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