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sardinhaSemlata

Um espaço de pensamento livre.

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17.02.21

na senda dos heróis II


Sarin

Panteão Nacional

Pela manhã perguntei o que é um Herói. Obtive respostas muito interessantes, e sugiro-vos a visita ao postal que o não é . Obtive respostas mas não respondi. Desvelei a ideia, sim, mas não me alonguei - para isso pensei e escrevi este postal. 

 

Um herói parece-me ser alguém por quem queremos modelar o comportamento. Não será forçosamente um valente, apenas alguém que se supera e supera vicissitudes. 

Na Antiguidade, os heróis venciam os deuses, pois que deles descendiam. Depois vieram os Bárbaros, e os heróis passaram a brindar aos deuses mas a serem notados pela valentia e pelo destemor nas terrenas artes da luta. Todas as guerras têm heróis porque todos as almas precisam de orientação. E eram guerreiros os heróis dessa gesta: se em guerra escolhiam os corajosos e, mais amiúde, os corajosos vencedores, entre guerras a paz chamava heróis aos bons, aos justos. Como se estas definições fossem incompatíveis.

E eram. Aparentemente, continuam a ser.

Um soldado é treinado para a guerra. Matar não é o seu objectivo - faz parte do seu treino e pode fazer parte da sua missão. Mas até para matar há regras, cujo incumprimento determina a diferença entre guerreiro e criminoso de guerra. 

Só em 1978 a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi adoptada em Portugal. E se não podemos avaliar à sua luz as nossas anteriores acções, então podemos, e devemos, reavaliar aquilo que dissemos depois.

 

Um herói não salva vidas matando os seus iguais - por isso os heróis da antiguidade matavam criaturas, não deuses nem homens, o restrito código de honra definindo oq ue podiam e deviam fazer. Um soldado é treinado para cumprir o seu dever, um bom soldado cumpre-o com denodo e valentia. E até pode ser um herói - quantos o não foram, o não são, carregando em braços camaradas caídos, arriscando a vida para salvar civis de fogos e torrentes... Mas nunca pode ser herói aquele que escolhe quem matar e quem salvar pela identidade. E será sempre um criminoso de guerra quem mata indiscriminadamente soldados, civis, crianças.

Marcelino da Mata matou indiscriminadamente soldados, civis, crianças. Nunca foi julgado por crimes de guerra, os poucos processos nunca avançaram, mas os seus próprios relatos dão conta de parte do que fez. Relatos que fazia com naturalidade, como se natural fosse matar quem nos atravanca o caminho: "entrámos na tabanca, deitamos granadas incendiárias para as palhotas, as pessoas fugiam para o centro da tabanca, matámos todos, homens, mulheres, crianças" E quantas destas mortes não ocorreram no desempenho das muitas missões que lhe valeram condecorações? 

Acredito que quem combateu lado a lado com Marcelino se sinta agradecido pela sua ferocidade. Também acredito que sobreviventes de naufrágio agradecerão a quem manda que se coloquem nos ombros de outros náufragos para que o próprio nariz fique fora de água.

Não responsabilizo apenas Marcelino da Mata. Cumpriu o seu trabalho e foi encorajado a usar todos os meios, quaisquer meios, em favor de um Estado Novo moribundo que, com assento já na ONU, se recusava ainda a entender o art.º 73.º da sua Carta - ter na devida conta as aspirações políticas dos povos e auxiliá-los no desenvolvimento progressivo das suas instituições políticas livres. Marcelino pouco contacto terá tido com a ONU ou com filosofias humanistas antes da guerra. O mesmo não se pode dizer de Salazar ou de Marcello Caetano.

 

Ou de Marcelo Rebelo de Sousa. Que assistiu ao funeral de um cidadão português, um dos mais condecorados militares da nossa História. MRS pode fazê-lo enquanto cidadão. Não deveria ter discursado enquanto Presidente da República - a República que condecorou Marcelino não tem os valores da República que lhe viu a urna.

E ambas se recusaram discutir a Guerra Colonial. Ambas se recusam ainda assumir responsabilidades pelos massacres, pelos crimes cometidos em Batepá (1953, São Tomé), Pidjiguiti (1960, Guiné), Mueda (Moçambique, 1960) ou  Luanda (Angola, 1961). Ou em Wiriamu, no norte de um Moçambique exaurido já no ano de 1972.

 

Mamadou Bá chamou sanguinário a Marcelino. E há quem se indigne e peça a sua expulsão de Portugal. Tarde vem tal apodo, ansiosos que andavam por um pretexto, um qualquer pretexto, para o mandarem para a sua terra. Uma petição que apenas reflecte a vingança das nada virgens muito ofendidas com o alegado insulto póstumo ao mais condecorado militar - que dizia, sobre si, ser "um preto que vem do Ultramar, da Guiné, do mato, e sou mais condecorado que os oficiais da nação, é uma vergonha para eles", sem lhe ocorrer que não seriam as suas origens a causa do desagrado de muitos dos seus irmãos de armas.

 

Na Baixa Idade Média difundiu-se, muito por conta das Cruzadas, a ideia do herói nascido das cinzas de um qualquer suplício, confundindo-se heroísmo com sacrifício. Tal ideia perdurou, e há ainda quem classifique de heróis aqueles que não passam de vítimas. Mamadou não é nenhum herói. Mas, à força de o quererem vítima, pode bem superar-se e superar as vicissitudes, derrotando-os.

 

Não, não há qualquer argumento que permita, nos dias de hoje ou nos de então, chamar herói a Marcelino da Mata sem nos colocarmos nos ombros de mortos.

 

É hora de fazermos as pazes com a nossa História. Mas, para isso, temos de a olhar de frente e esquecer os heróis que aprendemos, os heróis por outros valores condecorados.

Pergunto-me, até, se precisaremos de heróis. Se, humanos, não nos seremos suficientes. 

 

Por hoje fico-me entre os Grandes do Panteão Nacional, na imagem. Fico entre Grandes, não entre Heróis. E fico bem.

Fiquem também muito bem. Com Adriano Correia de Oliveira e Pedro Soldado.

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