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sardinhaSemlata

Um espaço de pensamento livre.

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02.10.20

Nós contra eles


JB

  A semana passada escrevi sobre os sonhos e fiquei com vontade de escrever mais sobre o assunto. Mais especificamente sobre o inconsciente, uma vez que os sonhos são apenas manifestações desse 'continente' como Freud lhe chamou. Eis senão quando, existe o debate presidencial dos EUA e é o espetáculo miserável que se esperava, por causa de quem se esperava. Baralhei-me sobre o tema, e agora? Vou escrever sobre o quê afinal? Estava quase a decidir finalmente e eis que surge um jantar de família, conversa puxa conversa e percebo que muito mais gente do que eu desejaria acha perfeitamente aceitável as propostas do Chega e a manifestação a dizer que Paulo Pedroso é pedófilo uma excelente ideia. Instalou-se novamente a confusão, o que escrever afinal?

  Como não gosto de me privar de nada, resolvi escrever sobre tudo isto e ainda assim conseguir fazer algum sentido, desejem-me sorte.

 No regresso desse feliz e animado jantar de família a minha filha perguntou: 

-Pai, como é que é possível tantas pessoas votarem no Trump?

Tentei responder o melhor que podia, ela percebeu à sua maneira (não sei qual terá sido). Vou tentar repetir a explicação mas agora numa outra linguagem:

 O ser humano evoluiu muito lentamente ao longo de muito tempo. A maior parte da nossa existência enquanto espécie foi apenas a tentar sobreviver num mundo hostil, onde tudo era uma ameaça. Lentamente mas de forma cada vez mais acelerada os Homo Sapiens foram-se organizando e formando comunidades. As comunidades tornaram-se tribos, as tribos em impérios, reinos, países e hoje até temos a ONU, UE etc etc. Hoje vivemos num mundo moderno e cada vez mais globalizado, tirando os jardins zoológicos, já não temos praticamente nada que nos relembre as nossas humildes origens. Ou será que temos?

 Claro que sim, a consciência disfarça melhor, mas o nosso inconsciente que é imenso e poderoso é mais primitivo e pouco ou nada civilizado. Lembra-nos diariamente as nossas primitivas origens, se soubermos comunicar com ele.
Por exemplo: -a mentalidade 'Us vs Them' (nós contra eles). É uma condição estudada pela psicologia e filosofia, significa ver algum outro grupo como completamente diferente do 'nosso', como uma verdadeira ameaça á nossa sobrevivência. Acontece em muitos tipos de espécies ou grupos entre a própria espécie, acontece numa matilha de cães, num grupo de chimpanzés entre dezenas de outros exemplos. É um 'instinto', uma reacção  inconsciente e primária que também temos enquanto humanos, uma desconfiança imediata por alguém baseado num estereótipo. É algo que cada vez faz menos sentido nos dias de hoje, mas que todos usamos e por vezes ainda é útil. Infelizmente, a história tem provado que faz mais mal do que bem. A maioria, senão todos os seres pensantes julgam-se boas pessoas, então como convencer pessoas que se julgam boas, a odiar outras que não conhecem? (Relembrando a pergunta da minha filha)

 

É assustadoramente fácil.
Oradores mais persuasivos descobriram que estes instintos podem ser canalizados para ganhar popularidade. Era só identificar um alvo para ser o 'grupo diferente de nós' e apartir daí a desumanização desse grupo é fácil. É necessário no entanto, para a 'fórmula' ser bem sucedida, acusar esse tal grupo de uma destas duas coisas:

 - Criminosos, quanto mais chocante mais eficaz.

ou

 - Preguiçosos que vivem à conta dos verdadeiros trabalhadores.

Desde há muito tempo que se usa esta estratégia de apelar aos piores sentimentos para ganhar popularidade, com efeitos e repercussões em diferentes níveis e escalas, sempre nefastas. O caso mais conhecido e infame, é a Alemanha Nazi.

  O 'nós' eram os alemães honestos e trabalhadores, o 'eles' eram os Judeus que assassinaram Cristo. Entre muitas outras coisas, acusavam os judeus de preguiça, Arbeit macht frei  lia-se nos portões dos campos de concentração (o trabalho vai libertar-te). Para os alemães que se julgavam boas pessoas seria impossível odiar alguém semelhante, mas a eles? Para eles não há piedade nem compreensão. 

  Desde há tempo demais que existem pessoas que se aproveitam disso, desse instinto animal que nos faz temer e odiar quem é diferente. Numa sociedade cada vez mais civilizada temos que reprimir  os nossos instintos mais básicos, esses políticos hábeis aproveitam-se dessa energia recalcada e dão-nos um alvo concreto. Alguém que uma pessoa que se julga boa pode odiar sem remorso. Repito, Hitler foi o mais famoso, mas não foi quem iniciou a prática, ela faz parte de todos nós nalguma medida, infelizmente a moda não terminou com o Hitler e parece estar a voltar em força. Quando o Trump diz que os mexicanos são "criminosos e violadores" está a falar para o inconsciente de muita gente que na sua mente ainda pequenina e animal exclama "pois são, eu sempre soube! Até que enfim que alguém diz !"; quando o Ventura diz que os ciganos são "preguiçosos e querem viver à conta de subsídios", está a falar para o inconsciente de muita gente que na sua mente também pequenina e animal exclama " pois são eu sempre soube! Até que enfim que alguém diz!". Os alvos podem variar claro: - refugiados, negros, gays, muçulmanos etc etc . É só escolher o alvo e seguir a fórmula.

  Sem perceber que não é por conhecerem um mexicano criminoso ou por conhecerem um cigano preguiçoso que todos são assim. Sem perceber o quão desumanos se tornam, esses que se julgam boas pessoas. Sem perceberem que todas as pessoas são diferentes, e que se queremos de facto ser boas pessoas e ser considerados melhores do que os animais temos que parar de agir como eles. Sem repetir erros do passado, faremos novos. Estes já sabemos no que vão dar. E sim, é mesmo nisso que está a pensar.

 

JB 

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