Caldeirada Com Todos... “João Pedro Santos”
sardinhaSemlata
O Lugar Onde Deixámos O Amor Para Trás
Perdoem-me a intromissão neste espaço que me foi emprestado pelos guerreiros autores desta lata de boas ideias com cheiro de maresia. Como vocês fazem para viver aí todos encavalitados dentro desse rectângulo de metal é algo que me ultrapassa mas se as sardinhas conseguem eu quero acreditar que um tipo com ganas de criador não pode nem deve ficar atrás.
Avancemos então meus bravos do pelotão.
Vivemos tempos estranhos, tempos em que o tempo parece ter parado sem que o mundo conseguisse acompanhar a finta que a vida (ou o perigo que ela acabe) nos pregou pelo mais pequeno dos seres. No Brasil diz-se que tamanho não é documento e parece que é mesmo assim.
Mas o tempo não parou. Galgou-nos as rotinas, saltou-nos para as costas e arranhou-nos a vontade. E nós agarrámos em pequenas pás e cavámos um buraco em nosso redor. Entrincheirámo-nos. Andamos a mirar o que se passa por aí a dois metros de distância como soldados rasos na Frente da Flandres. Em 1919 a febre espanhola apareceu-nos assim que a Primeira Grande Guerra terminou, agora o bicharoco malvado veio de armas e bagagens quando os buracos ainda estavam por escavar.
Mas na verdade não há buracos para abrir.
Na verdade não temos de viver em valas de medo e preconceito. Não temos de dobrar os joelhos e cerrar os dentes para com os que estão por lá, do outro lado, noutras trincheiras, noutras ideias, noutros desafios deixados adiados por cumprir.
O tempo não parou e nós teremos e de ficar de pé. De peito firme a olhar de frente para o que aí vem. E não importa o que aí vem. Não pode importar. Teremos de ser todos bravos do pelotão. A vida não se coaduna com o saco vazio da incerteza.
E o amor senhores? E o amor? Onde fica o amor. Ficou à espera que o mundo abra os braços para que a Humanidade volte a dar a volta da vitória. Largado aos elementos na terra de ninguém? Hiroshima e Nagasaki dos afectos. Tabula rasa. O Cogumelo da explosão de quem se esqueceu de escrever no quadro negro de ardósia com o giz de Arco-íris.
Garcia Márquez martelou palavras de amor em Tempos de Cólera.
Hemingway soprou-nos que a coragem, a loucura e a verdade são os tijolos de um amor maior.
Mas o tipo que me move as certezas de que tudo pode e vai voltar a um lugar sereno depois do tumulto chama-se Charles Bukowski. Descobri-o nas ruas de São Paulo e colou-se-me à pele como um doença venérea. Mas uma doença boa. Daquelas que te criam uma camada de brio na alma que perdura pelo resto da tua vida.
Buk (perdoa-me tratar-te por Buk mas com os amigos do peito não há cá cerimónias) disparou balas certeiras na noite sobre o que é e pode ser o amor. Deixo-vos aqui algumas pedradas no charco para que possamos (ainda) ser filhos de um Deus maior.
O amor não é mais que os faróis acesos de encontro ao nevoeiro.
O amor é a chave perdida da porta quando estás bêbedo.
O amor é aquilo que acontece uma vez por ano, a cada dez anos.
O amor não é mais que uma carica que tu pisas a caminho da casa de banho.
O amor são todos os gatos esmagados do universo.
O amor é aquilo que tu pensas que a outra pessoa destruiu.
O amor é traição, a arder no beco sem saída.
O amor é o ferro.
O amor é a barata.
O amor é a caixa do correio.
O amor é a chuva no telhado no hotel mais barato de Los Angeles.
O amor é o filtro do cigarro colado à tua boca.
O amor é o mais vazio dos lençóis de uma cama por completar.
O amor é o banco do bar quando já ninguém se senta nele.
O amor é o Corcunda de Notre Dame.
O amor é a pulga que não consegues encontrar.
O amor é aquilo que rasteja pelo chão.
O amor é uma palavra usada constantemente, cada vez mais constantemente, distante, cada vez mais distante.
O amor é a tua mulher a dançar colada a um estranho.
O amor são tectos azuis e tectos vermelhos e tectos verdes e andar de avião a jacto.
O amor é o telefone a tocar e alguém atender com a mesma voz ou com uma voz diferente mas nunca a voz certa.
Charles Bukowski
E é isto. Também pode ser isto.
Sempre chegamos ao lugar aonde nos esperam escreveu o mestre certo dia. Mas se não sairmos desta trincheira em que estamos enfiados, não chegamos a lado algum até porque não estará ninguém por lá à nossa espera.
Obrigado ao Jaime e ao Filipe pelo convite.
João Pedro Santos