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sardinhaSemlata

Um espaço de pensamento livre.

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23.04.24

Serenellini


Bruno

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Imagem: Bruno Nunes dos Santos

 

É assim mesmo! Bem metida!

Zé Carlos

 

Rezou-me a sina na palma da mão que o meu pai haveria de pagar 600 contos por um acordeão no centro comercial do saudoso Jumbo de Alfragide e colocar-me o Serenellini na mão para que eu acabasse algumas aventuras de estudante a tocar e a cantar a "Canção de Lisboa" (também "Fado Chic") com a mania que era o Fernando Farinha. Ah! E "o estava assar sardinhas com o lume a arder, queimei a pilinha..." também - uma música que tinha sempre um sucesso daqueles. Igual sucesso tinha o "olhá chibinha mé mé mé" que até permitiu que arrebatasse o coração a uma miúda - ainda por cima já em pleno século XXI! Enfim, ninguém é perfeito.

 

Na verdade, também me valeu umas valentes arengas com os puristas que defendiam as marcas mais antigas face a uma referência que há época teria uns 20 anos. Ainda me recordo de, já com idade para ter juízo, ter enfrentado três matulões com idade para serem meus pais, em plenas Festas dos Remédios de Lamego, apenas porque com os seus clássicos eram melhores que o meu italiano. Imaginem que entram num concerto de piano onde todos têm Steinway e vocês desatam a puxar por um Roland. Ou melhor, entram no Tuxo em Gualtar, encostam-se à máquina de jogos e pedem um "Robalo au Meunière em cama de Haricot Vert com Arroz Selvagem do Suriname e Azeite de Vila Flor oriundo de azeitonas apanhadas às quatro da madrugada depois dos melros terem abandonado o ninho".

 

O meu pai era um inovador e isso custou-me ao longo da vida um sem número de tentativas de "bota abaixo". Estranhamente, porque muitas das minhas influências e companhias da infância (e de grande parte da vida) eram todas muito mais velhas que eu. Na verdade, o meu pai adorava um bom "corridinho" ou até aquelas boas "tiradas" ribatejanas mas também me colocava perante as pautas clássicas. Quando dei por mim a  interpretar Piazzolla, John Barry, Yann Tiersen, Luis Bacalov, Ennio Morricone, Nino Rota e tantos outros, percebi que não ía longe - vá lá que os fados arrumavam a coisa e então quando eram as músicas dos Santos. O acordeão era para o bailarico e aqueles compositores serviriam apenas para encantar umas eventuais pseudo-intelectuais com saco de pano e sapatos penny com sola alta. Eventualmente umas professoras universitárias solteironas das Avenidas Novas também se encantariam por isso, mas... Os Santos! As Marchas de Lisboa faziam maravilhas pelos glúteos e pelos gémeos da plebe. 

 

Aos que estão a pensar que estou a utilizar o acordeão como gabarolice para dizer que era um verdadeiro encantador do sexo oposto, pois desenganem-se, a malta das guitarras, da bateria e até do saxofone batia-me aos pontos. Nem com a malta dos acordes à escuteiro ou à catequista eu tinha qualquer hipótese. A única vez que estive verdadeiramente próximo de passar a uma fase verdadeiramente íntima foi com uma vizinha que tive nos tempos de estudante. A Dona Henriqueta, uma senhora que terá com toda a certeza assistido às Guerras Liberais (tinha mesmo cara de quem tinha o retrato de D. Miguel na sala) e que não perdia uma oportunidade de elogiar os meus dotes musicais e oferecer-me bolos e geleias. Também me oferecia o aspirador às 06 da manhã quando as festas lá em casa se prolongavam. O João, o meu colega de casa, agradecia os bolos. E o Cláudio também, mas esse era esmifra. Isto até ao dia em que apareceu essa traidora da franja, como tão bem cantaria o Vasquinho.

 

O acordeão Serenellini motivou muitos sorrisos, muitas festas, muitas amizades, muitas bebidas e muitas comidas também. A música tem esse poder, sobretudo aquela música que espontaneamente surge nesses momentos.  Na verdade, nem sempre... todos conhecemos alguém que faz sempre questão de ir buscar aquele instrumento e quando isso acontece pensamos sempre "oh nãoooo". É naqueles momentos de celebração em que aproveitamos para ir fumar. Mesmo quem não fuma por alguns minutos converte-se ao Gauloises

 

No meu caso particular, desde que não seja flauta de pan aguento tudo. Confesso que não tenho tendências suicidas mas fico sempre perto de atravessar a sensação de cortar os pulsos quando escuto clássicos dos anos 60, 70 ou 80 em flauta de pan. Isso ou muitos dos novos chefs a assassinarem perante os turistas os nossos pratos típicos. Natas no Bacalhau à Brás? O Pastel de Bacalhau com Queijo da Serra ainda vai, agora as natas no...

 

O Serenellini foi inovador, deveras que o foi, aproximou-se de tudo e de todos e foi talvez o único ser dotado de som que conseguiu aguentar as bebedeiras da Carla que nunca se calava quando se enfrascava ou acompanhava com um "lá vai outra vez" aquela fase da bebida em que pessoas com quem raramente falamos nos abraçam, e antes de voltarem ao estado inicial no dia seguinte dizem: "sabes Bruno, és um gajos espetacular, nunca falámos muito mas és um um tipo muito porreiro".

 

O instrumento vive agora maior parte do tempo na sua caixa, provavelmente com ligeiras desafinações. Sai para recordar algumas músicas, para afogar algumas mágoas ou então até para recordar o aplauso do meu primo Zé Carlos (sim, Zé Carlos. Eu escrevi que ninguém era perfeito) quando toquei o fandango e que até hoje não me sai da memória. O Zé Carlos viria a abandonar-nos pouco tempo depois vitima de um cancro que nem lhe deu permissão para se despedir de quem mais gostava. Trocámos umas palavras naquela manhã onde o sol procurou vencer as nuvens cinzentas e onde as carrinhas funerárias formavam fila no cemitério da Ajuda para não mais voltarmos a conversar e ficar só aquela imagem, aquele sorriso e aquela boa disposição - sim, é verdade, os bons partem sempre muito cedo.

 

Talvez vá buscar o Serenellini, a noite quente inspira-me a sacar de uns fadunchos ou de umas marchas para os Santos que já estão quase aí - ou quiçá umas modas ribatejanas que a Ascensão na Chamusca está quase aí e é preciso estar preparado para a festa.

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Para assistir: não poderia deixar de ser, Parov Stelar no Sagres Campo Pequeno. É bom, simplesmente bom e com este calor vai ser uma festa daquelas.

Para ouvir: John Barry, de quem falei, não foi só o homem das bandas sonoras de "Out of Africa", "Somewhere in Time", de alguns temas de "James Bond" e de tantas outras grandes obras. Compôs alguns temas fora deste registo e dos quais destaco o maravilhoso album "The Beyondness of Things". Cada composição é melhor que a outra. Para ouvir em boa companhia e com uma boa bebida.

Para ler: "A Morte do Sol" de Yan Lianke. Uma descoberta muito recente e que perante algumas reticências me fascinou. Uma verdadeiro hino à literatura do Oriente mas do mundo inteiro. Um autor a seguir.

Para comer e beber: no Porto e em Matosinhos (mas a minha aposta é sempre na segunda) o Meia-Nau é de paragem obrigatória. Um serviço de excelência sem entrar no excesso, peixe de uma qualidade singular, não chegassem do outro lado da rua os aromas da lota, e um ambiente fantástico. O peixe grelhado, o arroz com polvo frito, o peixe-galo... A acompanhar um bom peixe seja lá onde for, o Albariño Mosén Anselmo é um néctar do outro mundo. Uma aposta total na qualidade e um produtor à antiga. Produção pequena mas um verdadeiro tesouro.