Sobre o racismo e a violência policial. Nos EUA, mas não só
Sarin
Os Estados Unidos da América foram, na semana passada, convulsionados por um acto de violência policial. Mais um. Contra um negro, mais uma vez.
O caso tem tudo para ficar nos anais da História das Civilizações:
- racismo, e não adianta dizerem que a cor da pele não interessa no caso: os dados indicam que morrem 3 vezes mais negros do que brancos às mãos da polícia dos EUA, e que 17% daqueles estavam desarmados, contra 12% dos brancos. Perante estes números, não há acaso mas cultura.
- violência policial, e poupem-se os comentários como "esses vídeos foram encenados" já que, mesmo que alguns tenham sido preparados, há milhares a circular pela internet há anos, imagens que apenas ilustram os muitos relatórios que se vão lendo. E não adianta a conversa de que também os polícias morrem às mãos dos criminosos: em 2018 foram 55 os polícias intencionalmente abatidos dentre os 106 mortos em acção, uma desproporção face aos civis abatidos pela polícia que, só por si, bastaria para perceber que alguma coisa vai mal nas forças policiais.
- homicídio, possivelmente menos circunstancial do que aparenta e provavelmente não apenas perpetrado por Derek Chauvin mas também pelos seus colegas, já que, e apesar das várias versões do relatório do médico legista, afinal a causa da morte não terá sido o estrangulamento mas a pressão exercida nos pulmões e nas artérias.
- tentativa de ocultação, vejam-se as diferenças abissais entre relatório preliminar e relatório oficial (mas ainda não final) do médico legista.
A morte de George Floyd já foi amplamente debatida, continuará a sê-lo e a mim, porque história velha apesar dos recentes factos cujas imagens não vi, não me torna mais alerta ou mais activa do que antes - embora deseje que sirva para chamar mais alguns ao trabalho nas ONG. Foi com um caso parecido que comecei, vários anos ARS (Antes das Redes Sociais). Sobre este caso, prefiro atentar na outra questão - os motins.
Poder-se-á dizer, e disseram, muita coisa sobre os motins, mas dois pontos houve que me chamaram a atenção e que não vi abordados como gostaria: a causa e a dimensão.
É inegável que a cultura Trump aplaude e promove a violência policial, seja pela revogação de legislação que previa a vigilância federal da actuação policial, seja pela reversão na abordagem judicial, deixando cair as investigações de violação dos Direitos Humanos por parte das forças policiais, seja ainda pela distribuição de armamento militar a estas mesmas forças.
Esta cultura Trump é um reforço de uma cultura de violência que, respaldada na Segunda Emenda da Constituição, faz de cada cidadão um potencial portador de arma com direito de disparo em defesa da sua pessoa e dos seus bens. Há os que repudiam tal cultura, há os que a abraçam - mas uns e outros morrem sob as balas. Não da mesma forma, já se viu que estas tendem a escolher alvos.
É também um reforço de uma cultura de supremacia intra-espécie, um racialismo que Trump bebe e exsuda desde há muito. Um racismo do qual os EUA nunca se desfizeram e cujas feridas nunca sanaram. Trump aprofundou o fosso e recuperou os velhos conflitos históricos, sendo de lamentar mas não de surpreender que os ódios assim destilados reverberem em confrontos por todo o país.
No entanto, a causa destes motins não será apenas a pressão a que as comunidades estão sujeitas e que, uma vez soltas, arrasam pedra e vidro e tudo o que apanham. Não é de agora que manifestações pacíficas se transformam em motins, há sempre quem se infiltre e tente dar vazão à revolta que nada tem a ver com as causas da manifestação. Como aconteceu recentemente nos motins do Minnesota, onde a violência parece ter nascido, afinal, por mãos brancas. Mais preocupante porque esta infiltração aparenta fazer parte da agenda dos aceleracionistas, extremistas que pretendem acelerar a História, como dizia Lenine; à esquerda antecipando um qualquer paradigma pós-capitalista, à direita intentando um paradigma de hegemonia racial. Não se sabe ainda quem ou que grupos estão na base dos motins. Mas as forças de segurança sabem que estão em intensa actividade. E sabem que estão a ganhar maior dimensão e maior gravidade entre a extrema-direita.
Nenhuma insatisfação ou sentimento de injustiça justifica apoiar actos violentos, e tentar relativizar a violência policial ou o racismo apenas contribui para legitimar o que deveria ser inadmissível. Lá, como cá. "Ah, em Portugal não há racismo, e a polícia não faz mal, e tal"... é conversa de quem quer tapar o sol com as peneiras.
Desafio-vos a pensar em eventuais demonstrações de racismo nas quais mal atentamos, ocasiões que, por nos serem tão quotidianas, nem damos conta que são ofensivas e discriminatórias - e que nos demonstram ser o racismo herança de séculos. Não sejam semíticos nos casos que ponderarem, deixem-se de ciganadas para inglês ver e façam uma análise que vos não dê vontade de pintar a cara de preto. Até para a semana, e entretanto fiquem bem. Fiquem com Nina Simone e Emil Latimore.
Estive ausente da blogosfera e, particularmente, deste espaço por motivos alheios à minha vontade. Muito agradeço a disponibilidade do Filipe Vaz Correia, almirante aqui da sardinhada, que num esforço coroado de glória me substituiu nestas duas semanas. Agradeço-lhe a ele e a quem também aqui em vão me procurou - obrigada pelas vossas solicitude e atenção.