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sardinhaSemlata

Um espaço de pensamento livre.

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07.05.24

Um certo medo dos 500 anos de Camões e de celebrar Portugal.


Bruno

 

 

 

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Imagem: Bruno Nunes dos Santos - ao largo de Setúbal

 

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E enfim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.

Luís Vaz de Camões

 

 

As celebrações dos 500 anos de Camões evidenciam um determinado enredo de que celebrar a Língua Portuguesa, a História de Portugal e até a nossa Identidade é um acto de rebeldia e dotado de alguma veia reaccionária. Actualmente, celebrar a língua e os heróis nacionais é motivo de censura, mas mais grave que isso é a desatenção a que nos prestamos, permitindo que tudo aquilo que somos (para o bem e para o mal...) seja depositado em arquivo morto e nos sejam impingidos com a máxima rapidez e numa cegueira ideológica novas formas de ser português - ou não o ser. 

 

Numa época em que na boca de alguns, outros alguns com altas responsabilidades na condução do país parecem cometer crimes de lesa-pátria, é também um crime não celebrarmos Camões. Podemos imaginar o que seria em Espanha suceder o mesmo com Cervantes, ou na Alemanha com Goethe e em Itália nem seria bom pensar que Dante tinha sido varrido para um dos dez fossos do seu Inferno. Podemos alegar que já existe uma comissão criada apressadamente para a celebração que terá lugar a partir de 10 de junho (aguardemos pela data de apresentação a 20 de Maio), mas é no mínimo insólito criarmos comissões cuja extensão é praticamente meia década - e os honorários também - para celebrar datas como o 25 de Abril ou até se prepararem umas Jornadas Mundiais da Juventude e com Camões fazermos aquilo que alegadamente já havíamos feito no século XVI. Reza a lenda que para lá da desvalorização do poeta também este era remunerado tarde e a más horas. 

 

Porquê tanto receio em invocar Camões e uma época gloriosa? Porquê tanto receio em celebrar a língua portuguesa que teve o seu "Dia Mundial" anteontem, 05 de Maio, e é preciso estar no estrangeiro para termos noção que a mesma é celebrada? Para todos os efeitos, a história de Camões é desconhecida e muitos são os mitos à volta da mesma, afinal quero acreditar que ninguém levou a sério que na costa do Cambodja o cavalheiro se salvou em alto mar e com "Os Lusíadas" sempre no ar de modo a que não se perdessem -  por muito bom nadador que fosse ou por mais resistente que fosse a tinta da Cerrutí ou o papel da Navigator. Lembremo-nos que o nosso carácter é formado não apenas pelas nossas liberdades, mas também pelas forças da memória e da história e são também essas forças que nos unem, mesmo que exacerbadas nesta ou naquela passagem.

 

Celebrar Camões, pode aos olhos de muitos, ser uma forma de celebrar mitos, uma história negra que todos temos de pagar bem caro. Celebrar Camões pode ser a afirmação desta ou daquela ideologia, como se muitos não celebrassem e não desejem o regresso de alguns dos maiores tiranos da História Contemporânea em detrimento do pobre poeta. Não obstante, celebrar Camões é celebrar o povo que somos, que não tem de ser encarado como se "fosse o maior da sua aldeia" mas que se deve lembrar do seu passado para construir o seu futuro. Um povo que assim pode celebrar a sua língua (que tanto precisa de ser preservada, sobretudo na sua raiz) e até a sua carga identitária. Celebrar Camões é celebrar o que somos livremente, quer estejamos em Pernambuco, Macau, Omã (onde muitas palavras ainda são de origem portuguesa) ou até na Dinamarca ou na Nova Zelândia.

 

Para celebrarmos Camões, também não temos de estar envolvidos em agendas académicas pesadas e revestidas de poeira ou cerimónias protocolares de engalanamento de académicos e promoção de dirigentes governamentais. Camões tem de andar na rua, tem de chegar ao cidadão comum que trabalha; ao cidadão que está desesperado e se sente abandonado pelo Estado; ao cidadão que não sabe bem o que é ser português; ao cidadão que já não se identifica com a sua pátria, às crianças e aos jovens. Camões tem de ser celebrado mesmo sem lá estar, sair da biblioteca e acabar numa discoteca ou até numa actividade empresarial. Tem de estar espalhado pelo mundo com iniciativas que mostrem aquilo que é o passado português e aquilo que tal passado nos deu. Camões não se pode fechar em edifícios públicos ou ter grades a separarem o poeta das pessoas, como acontece sempre que se celebram algumas datas relevantes como o 05 de Outubro ou até o 10 de Junho. 

 

Itália, sobretudo Roma, não hesita em celebrar o seu império, o Egipto também não, a Grécia muito menos, e tantos outros povos que em tempos foram conquistadores mas também foram conquistados. Que cometeram erros mas que também trouxeram novos mundos ao Mundo. Haverá quem critique celebrar Camões sobretudo pela sua associação aos Descobrimentos, mas não hesite na selfie e na idolatria dos Khmers Vermelhos, à idolatria de estátuas comunistas e de uma enorme paixão pelos impérios que mencionei anteriormente, como se Roma, Grécia e Egipto não tenham tido por base um lado menos cor de rosa. 

 

Não celebrar Camões em toda essa plenitude, é comprometer aquilo que é ser Português desde a prosa Camiliana até à poesia Bocagiana sem esquecer todos os Aleixos que encontramos em cada aldeia ou cidade. Não celebrar Camões é matar a nossa alma, e "a alma é um animal selvagem com pulmões e narinas, que precisa de muito oxigénio e que no meio da poeira e de muitos bafos asfixia" como sublinhou tão bem pela boca de Zorba o grande Kazantzakis. Não celebrar Camões é não nos aventurarmos por esse mar não poucas vezes tenebroso que é sermos lusitanos.

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Para ler: celebremos a nossa língua, e aí não poderei deixar passar um dos meus predilectos. Difícil é escolher o livro, mas como ele "não acredito na ideia, acredito na emoção e acho que não faço asneira". Vergílio Ferreira e o seu "Em Nome da Terra".

Para ouvir: não sendo o maior adepto da música portuguesa, mas tendo em conta este apelo ao ser português, talvez deixar a "Saudade" dos Heróis do Mar, single do primeiro albúm com o nome da banda e que data de 1981 - mais uma vez a culpa das irmãs, pois eu ainda não andava por cá.

Para ver: uma sugestão bastante interessante e que não terei oportunidade de ver. Pela malta da Companhia de Teatro de Almada, "Calvário". Com o texto e encenação de Rodrigo Francisco é já no Dia 11, no Sardoal. Quem andar por lá perto, depois venha cá contar.

Para comer e beber: uma boa surpresa da Costa Vicentina que me chegou recentemente. O "Vicentino Branco Sémillon, Arinto e Alvarinho". Fácil de encontrar e mais fácil de beber. Desde de Fernando Pó e costa abaixo, temos uma região surpreendente para o Arinto e para o Alvarinho. A comer, algo também bem português é no Príncipe do Alva em Coja. À simpatia das gentes do Açor e do Alva que é inigualável, junta-se a boa comida com boa pinta. Cheguei desconfiado, tornei-me fiel.

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