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sardinhaSemlata

Um espaço de pensamento livre.

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20.02.24

Uma outra pandemia: a Polarização


Bruno

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Imagem: Bruno Nunes dos Santos - Cemitério Canadiano de Beny-sur-Mer (Normandia)

 

Nota prévia: a imagem é a última morada de um dos 19 soldados (no total são 2048) anónimos da 3ª Divisão Canadiana que a 06 de Junno de 1944 se dirigiu para Caen. Os anónimos podem fazer toda a diferença quer durante um conflito, quer para evitar o mesmo (o desejável). Muitos dizem que em guerra, ou até noutros conflitos, nem sempre são os mais corajosos que voltam e começam a construir novas gerações mas aqueles a que se ousou denominar de "boleias". 

 

 

Os controladores da verdade seguiram o seu caminho com os transistores e a televisão e a internet e o smartphone, fazendo proliferar as suas verdades e desprezando-as cada vez mais directo e instantaneamente na cabeça das pessoas.

Tim Mackintosh-Smith, in "Árabes"

 

Decidi escrever sobre um tema que, apesar do meu enorme interesse, tenho de confessar que não são águas onde me sinta confortável para enfrentar as ondas, mas tendo em conta que a gigantesca polarização, sobretudo na política, está a mudar o rumo da sociedade como a conhecemos, não poderia deixar escapar - até porque, tenho sentido que a polarização já se entranhou de tal forma na sociedade que vai para lá da política e já entrou nas organizações e nas comunidades. E é isso que me deixa mais preocupado, e também como profissional, mais interessado em combater a mesma.

 

Na verdade, entendo que a polarização acaba também por ser a causa que faz com que o Homem seja o que é hoje e possivelmente ainda cá esteja. Afinal, a tendência para nos agruparmos a partir de um certo período da história humana, não só nos tornou mais fortes, resilientes e solidários mas também mais sujeitos a bolhas onde a vedação a pontos de vista diferentes acaba por ser mais alta e, não raras situações, electrificada. Essa muralha psicológica ou física (ou uma combinação de ambas) acaba por levar à formação de estereótipos. Se a este cocktail juntarmos a globalização, a tecnologia, as assimetrias económicas, as redes sociais e uma fragmentação gigantesca de culturas e valores, temos uma explosão com consequências dramáticas. Podemos ainda adicionar mais uma munição: a empatia (falta dela).

 

E apesar da diferença ser desejável, o extremar de posições não traz consigo melhores resultados levando à intolerância, ausência de cooperação (inclusive entre pares) e consequentemente uma total ineficácia na resolução dos problemas, seja numa organização empresarial, vida pessoal ou até na administração de um Estado com as habituais dificuldades na implementação de políticas públicas eficientes e até à acinesia desse mesmo Estado. Na verdade, quando estamos altamente distantes não vamos por certo conseguir trocar argumentos ou sequer abrir a nossa mente a outros pontos de vista, já para não falar das fake news. Em meu entender, as fake news não são nada de novo e sempre existiram e irão existir sempre, o que me dá esperança é que neste estágio de evolução humana já possamos ser capazes de interpretar - estarei a ser naif, mas a Ocidente, será a prova de que aprendemos muito mas interiorizámos pouco.

 

Não obstante, apesar de tudo acredito que é possível debelarmos o crescimento da polarização com métodos simples, nomeadamente a educação, a própria empatia e o activismo saudável. O problema aqui está muitas vezes relacionado com o facto de alguns destes instrumentos estarem já sob alçada de um campo totalmente intransigente e que transporta a sua ideologia cegamente para estes. Aliás, veja-se as mais recentes alterações/apropriações/manipulações a que a Educação tem estado sujeita na Europa e nos Estados Unidos. Ao invés dos viéses ideológicos, é esta que é a pedra de toque para preparar qualquer cidadão na compreensão de culturas diferentes, valores e até formas de estar, promovendo o espírito crítico, a resolução de problemas e a comunicação. Também podemos começar nós, se "lá em cima" não nos for dado o exemplo. Sou sempre dessa opinião.

 

Teremos muito a ganhar se racionalmente não formos cegos e utilizarmos a razão não para confirmar aquilo em que queremos acreditar, mas sim para nos fazer perguntar e olhar para o outro. Quiçá até secundarizá-la em relação à intuição como defende Jonathan Haidt, um dos grandes investigadores na área da polarização. Mentes diferentes, com pensamentos diferentes, de origens diferentes trarão excelentes resultados a uma sociedade que hoje procure desenvolver-se e atingir níveis elevados nesse campo. Não podemos ser utópicos ao ponto de achar que teremos de nos comportar como pinypons, mas também não podemos abandonar anos e anos de desenvolvimento como seres humanos e transformar os 10% de abelha numa percentagem maior em relação aos 90% de chimpazé. Para isto, não nos podemos fechar num acomisme de aguardar pelo mundo melhor que há-de vir, sob pena de sermos peças de exposição numa qualquer outra galáxia, num museu sobre civilizações extintas.

 

Uma nota final para as organizações empresariais, que cedendo à tentação da polarização ou aos hypes do momento, arriscam muitas vezes a imagem futuro. E coloco aqui o verbo ceder porque também múltiplas vezes é uma cedência à pressão e com medidas a quente e mal analisadas. E sim, também a polarização ocorre entre colegas, até porque me muitos casos, a mesma já começa no próprio processo de recrutamento onde nem sempre a culpa é dos valores das organizações mas da falta de capacidade dos recrutadores ou daqueles que lhes enviam os perfis para recrutar.

 

___________________________________________________________________________________________________________________________________________________Para ouvir: foi a minha companhia numa longa viagem por estes dias. A Sinfonia Nº 4 , Op. 90 de Mendelssohn, conhecida pela "Italiana" é uma daquelas coisas que transforma qualquer final de dia triste em movimentos alegres e de criação. É uma companhia de viagem como poucas. O Allegro Vivace lembrará decerto os menos atentos. 

Para assistir: na Politécnica, os Artistas Unidos, pela mão de João Pedro Mamede, trazem ao palco "Victor ou as Crianças no Poder" de Roger Vitrac. Na apatia de sermos tudo mas não sermos nada, talvez Victor esteja certo.

Para comer: O Minhoto em Almeirim. É uma das casas cujo um dos empregados ainda andou comigo ao colo. Rivalizando com outros de maior fama, o borrego, a sopa, aquele pão e tudo o que por lá se coma é inigualável. É daqueles restaurantes que até mesmo seguindo pela A1 em direção a outras paragens, fica a vontade de fazer o desvio - vontade essa que é muitas vezes cumprida. Não é nostalgia, é mesmo boa comida num ambiente verdadeiramente ribatejano.

Para ler: fugindo ao "Arquipélago Gulag" que deveria ser de leitura obrigatória, nada como acompanharmos "Um Dia na Vida de Ivan Deníssovitch". Aleksandr Soljenítsin, leva-nos mais uma vez a lugares onde não queremos estar mas temos de conhecer sob pena de repetirmos o passado que... Parece ter feito uma viagem ao presente e retardado o futuro, especialmente na Rússia, mas também por paragens como Gaza ou China. Gosto especialmente dos pequenos prazeres Chúkhov.

Para beber: abriu-se este fim de semana a última garrafa para acompanhar um rojões à beirã no caçoilo de barro e mesmo no fogo - Socalcos de Bouro Alvarinho Superior Branco Premium 2022.

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